Fernanda Ribeiro é turismóloga. Raspa de tacho de uma família humilde de sete mulheres, foi a única das filhas a estudar em escola particular. Se formou e logo começou a trabalhar em grandes corporações. Foi durante um burnout quando era funcionária de uma grande companhia aérea que resolveu tirar um ano sabático e mudar de vida. Nove meses depois, ela e o marido, Sergio All, fundaram a Afrobusiness, rede para conectar empreendedores pretos. Nessa altura, o bicho do empreendedorismo já havia picado a então ex-executiva. Ao lado do seu parceiro, um ex-dono de agência de publicidade que definiu como meta de vida abrir um banco – assunto para a entrevista abaixo —, ela cofundou a Conta Black. O objetivo era levar uma experiência de banco e acesso ao crédito à comunidade preta, ambos negado pelo sistema tradicional. As razões são estruturais e passam pela falta de inclusão do grupo na sociedade. “A maneira como o preto se relaciona com o dinheiro é totalmente diferente de uma pessoa branca. Só que isso não é levado em conta”, disse Fernanda à DINHEIRO.

Por que abrir uma conta bancária exclusiva para negros?
FERNANDA RIBEIRO — São duas razões. Uma pessoal e a outra, decorrente do Afrobusiness, primeiro negócio que eu e o Sérgio montamos. A pessoal começou há 15 anos quando o Sérgio, que é formado em publicidade e na época era dono de agência de publicidade, recorreu ao banco em busca de crédito. Ele tinha mais de 30 funcionários, folha de pagamento naquela instituição financeira, onde também consumia outros produtos e serviços, seu nome estava limpo e quando foi pedir crédito teve a solicitação negada. Não houve justificativa razoável. Ele não teve acesso porque era preto. Ali, decidiu que um dia teria um banco. Quando lançamos a Afrobusiness descobrimos que o caso dele não era uma exceção, era regra.

Como chegaram ao diagnóstico?
A Afrobusiness nasceu com o propósito de criar um network entre empreendedores pretos e pretas. Trabalhamos para dar capacitação, conectá-los entre si e com a cadeia de valor de grandes empresas. Foi aqui que confirmamos o desafio do crédito. O acesso a quem pedia era recorrentemente negado sem razão explícita. Em seguida, vimos outro gap de mercado. Quando tentávamos conectar o empreendedor com as companhias descobrimos que muitos não tinham sequer conta bancária porque não conseguiam. Ao perceber essa deficiência de mercado, juntamos o desejo do Sergio de abrir um banco e criamos a Conta Black, que nasce como uma conta digital.

Por que esse modelo?
Em 2018, antes da regulamentação das fintechs, eram necessários R$ 45 milhões lastreados no Banco Central para abrir um banco. Então, começamos a pensar em como iríamos montar um de maneira criativa. O caminho foi usar o modelo dos cartões de viagem, aplicar tecnologia e criar uma empresa de arranjo de pagamentos [regulamentado em 2013 pelo BC, ele conecta todas as partes envolvidas em transações financeiras eletrônicas, sem poder oferecer empréstimos ou financiamentos aos clientes]. Um ano depois, em 2019, recebemos o primeiro aporte de R$ 1,5 milhão de um investidor anjo. Com o recurso, investimos na estruturação para operar como banco. O cliente tinha uma experiência de conta bancária só que por trás de tudo éramos um arranjo de pagamento.

Existem outros aspectos particulares dessa comunidade na lida com o capital?
Sempre discutimos a circulação de dinheiro entre as pessoas pretas. Só que começamos a perceber que elas não faziam negócios entre si. Esse comportamento é diferente de outros grupos, como os orientais e judeus, que são economicamente fortes porque os recursos financeiros circulam entre eles. O dinheiro que entra só permanece dentro da comunidade preta por horas. Em outros grupos, pode chegar a 18 meses.

Essas dores continuam as mesmas?
Temos a mesma dor só que com uma maquiagem diferente. Exemplo: o empreendedor negro ainda tem o crédito negado quatro vezes mais do que um branco na mesma situação. Só que a ele é dito que tem crédito sim, porém a promessa não se efetiva. Diversos fatores estruturais contribuem para isso. Um deles é o endereço. Se a conta tem CEP da periferia, esquece. Eu mesma mantenho uma em um grande banco e não tenho crédito na instituição. É uma conta em que recebo os pagamentos por consultorias e palestras, só que o endereço é na periferia.

Mas e as sofisticadas tecnologias de análise de crédito tão divulgadas?
Na hora de conceder crédito, a maioria das empresas considera informações de birôs, como o Serasa. Só que a análise feita por eles olha para o passado e não para o futuro. O histórico não mostra o potencial. Além disso, a comunidade tem muitas especificidades que são ignoradas pelo sistema financeiro tradicional.

Como quais?
Atualmente, 51% dos microempreendedores individuais se autodeclaram negros. O que observamos é que nesse grupo existe muita conta Pessoa Física que na verdade é Pessoa Jurídica. O faturamento da empresa é usado para comprar gás para a casa, porque o capital negro não é individual, é familiar. Isso é falta de educação financeira, um problema que já é grave no Brasil e fica pior no recorte por raça. Em comunidades pretas e periféricas, ninguém fala em dinheiro. A maneira como o preto se relaciona com a moeda é totalmente diferente de uma pessoa branca. Só que isso não é levado em conta. É como aquela música dos Racionais que pergunta se preto e dinheiro são rivais [Vida Loka]. São sim. Na comunidade preta o dinheiro é visto como um grande inimigo. As pessoas são estimuladas a manter o lifestyle da pobreza.

Como assim?
Um exemplo, é a nossa relação com o seguro. Dados da ONU apontam que a cada 23 minutos um jovem negro morre. Então, quando entramos nas comunidades para falar sobre dinheiro, sobre futuro, o pensamento que eles têm é: ‘Se eu tiver dinheiro, vou gastar já porque eu não sei quanto tempo vou ficar vivo’. Outro exemplo. Muitos pretos ainda guardam dinheiro no colchão. A razão? Não acreditam no sistema bancário. Acham que serão roubados. E ainda tem a diferença no gatilho do consumo. Um branco quando é maltratado pelo vendedor de uma loja, vai embora. O preto, compra. Ele não precisa, mas compra para se posicionar diante do racismo.

As peculiaridades são tantas que a pergunta é inevitável. Empresas não diversas falam com a comunidade?
Não funciona. As empresas não falam com todos os públicos, falam com um só. O resto é imaginação. Eles imaginam que sabem do que o preto precisa.

Falamos sobre falta de planos futuro na comunidade preta. Mas e a Conta Black. Qual futuro imaginam para ela?
Em 2020 mudamos de posicionamento, deixando de ser uma conta digital para ser um hub de produtos e serviços financeiros alocados em uma conta digital. No fim de 2022, fizemos a segunda rodada de investimento, mas ainda não podemos divulgar detalhes. Agora estamos mudando o escritório para a Faria Lima [coração financeiro-tecnológico paulistano]. A Conta Black vai empretecer a Faria Lima e então vamos fazer o IPO.