Há exatos 20 anos, na semana passada,
ganhava vida um dos maiores mitos da
economia brasileira: o Plano Cruzado, que até hoje influência decisões econômicas em Brasília. Lançado em 28 de fevereiro de 1986, na frágil presidência de José Sarney, ele tinha por objetivo acabar com a inflação de 200% ao ano, na qual o País estava mais ou menos viciado. Copiado do Plano Austral argentino, o Cruzado foi um sucesso instantâneo. Mobilizou a sociedade, multiplicou a renda e deu a impressão de que se tinha domado a inflação num passe de mágica. Depois veio a ressaca. No espaço de um ano a inflação foi a zero, passou nove meses em torno de 2% e depois saltou a 7% ao mês. Quando o Brasil abriu o olho, havia escassez de mercadorias, polícia laçando boi no pasto e a inflação mensal rosnava de novo em 20%. Nesse patamar ela passou os próximos oito anos, até ser abatida pela combinação de astúcia e ortodoxia do Plano Real. ?Aquilo foi um grande aprendizado?, avalia o economista Chico Lopes, um ?cruzadeiro? de primeira hora que viria a integrar, mais tarde, a equipe do Real ? em companhia de Pérsio Árida, André Lara Resende e Edmar Bacha, economistas que também estavam no time do Cruzado. ?Sem as lições daquele fracasso, o sucesso do Real não teria sido possível.?

Passados 20 anos, o Plano Cruzado ainda está presente na cena brasileira. Seu principal protagonista está morto ? o carismático ministro da Fazenda Dílson Funaro ? mas, estranhamente, sobrevive pelo avesso em sucessores como Pedro Malan e Antônio Palocci. Depois do estilo voluntarioso e messiânico do industrial paulista, decidiu-se que ministros da Fazenda tinham de ser cinzentos, escorregadiços e ferozmente ortodoxos. O Brasil tornou-se acerbamente conservador em economia. O cruzado, lançado em 1986 como substituto ?forte? do cruzeiro, não durou uma década. Foi substituído pelo real em 1994, que nasceu cercado pela obsessão anti-inflacionária. As taxas de juros escorchantes e a valorização forçada em relação ao dólar, que ainda hoje assombram a economia brasileira, são uma reação à leniência com que a moeda foi tratada no Plano Cruzado. Inflação nunca mais, a qualquer custo.

Vem do Cruzado a aversão da elite econômica a tudo que cheire a ?populismo?. O congelamento de preços, combinado com o gatilho automático de reposição salarial, elevou a massa de salários em 30%. Ocorreu na economia uma injeção de US$ 30 bilhões que levou às compras milhões de brasileiros que antes estavam à margem do consumo. Extremamente positivo, esse momento de inclusão econômica em massa entrou nos manuais de economia como grande burrada. Foi
a época dos fiscais do Sarney, que fechavam no grito os supermercados remarcadores. Foi a época da farra do frango e do iogurte, que rapidamente degenerou em escassez e desorganização da produção. A lição, com tudo que ela tem de anti-popular, foi aprendida e entranhada ? farra, agora, só de juros, que transferem renda do Estado para a elite e achatam o poder de compra da multidão. Crescimento acelerado, nunca mais. Se na época do Plano Cruzado a jovem equipe econômica morria de medo do Dieese e do ministro do Trabalho, Almir Pazzianoto, agora, em pleno governo do PT, são mínimas as considerações sobre ?perdas salariais?. O Comitê de Política Monetária decide a taxa de juros de maneira olímpica e qualquer menção a incluir a sociedade no debate é rechaçada a pontapés. A política econômica decide-se em um círculo cada vez mais restrito de influências, que gravitam apenas em torno do mercado financeiro. Mesmo assim, de alguma forma, o Plano Cruzado resiste. ?Ele está no imaginário das pessoas, mostrando a força eleitoral da estabilidade monetária?, diz o professor Bacha. Não é por outro motivo, diz ele, que Sarney é o ex-presidente mais popular da história recente. E não será por outra razão que o presidente Lula, assim como Fernando Henrique, delegou a política econômica a meia dúzia de fundamentalistas. Há 20 anos do Plano Cruzado, as lideranças brasileiras ainda não descobriram o que fazer com o País depois de debelar a inflação. Falta imaginação ao poder.