Por dia, ao menos 233 crianças e adolescentes são agredidos, sofrem violência psicológica ou são vítimas de tortura no País. Mas esses dados se referem apenas aos casos notificados, de modo que o número de pessoas de 0 a 19 anos que são alvo de violência pode ser muito maior. A avaliação é da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que pela primeira vez fez um levantamento sobre o tema a fim de alertar a sociedade e iniciar uma campanha de orientação para os pediatras.

O relatório tem como base dados coletados pelo Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, de 2009 a 2017, último ano com informações disponíveis e que contabilizou 85.293 registros. Em todo o período, foram 471.178 notificações.

“Precisamos ter mais conceitos desse conjunto e ir além dos números. A violência é uma doença crônica, epidêmica e contagiosa. Ela tem uma história, tem exames que comprovam, tem tratamento, tem orientação a se fazer. É uma condição que tem de ser tratada de forma multiprofissional. Outra característica é que ela acontece em todas as classes sociais e não tem relação com escolaridade”, explica Marco Antônio Chaves Gama, presidente do Departamento Científico de Segurança da Criança e do Adolescente da SBP.

Segundo ele, a maioria dos casos ocorre em casa e é praticada pelos pais. “O nível de repetição é de 40%. A família da criança que é agredida tem de ser muito bem avaliada por multiprofissionais que tiveram treinamento sobre isso. Baseado nesse diagnóstico, é possível determinar se a família tem condição de se recuperar ou se a criança precisa ser abrigada.”

Presidente da sociedade, Luciana Rodrigues Silva afirma que, apesar da possível subnotificação, o número de casos tem crescido ano a ano. “Não só porque (as ocorrências) têm aumentado, mas porque as denúncias vêm crescendo. Há uma preocupação muito grande, porque temos, de forma incansável, de proteger cada criança e adolescente”, analisa.

A partir de janeiro, a SBP vai iniciar uma campanha com os pediatras para ajudá-los a reconhecer sinais de violência física e psicológica, além de orientações para notificação dos casos.

“É preciso que a população saiba que o pediatra cuida desde antes do nascimento até os 19 anos. O Brasil está aquém dessas questões de acompanhamento psicológico e familiar. Os pais devem ser orientados desde a primeira infância e é preciso que os gestores se voltem para essa questão. Vamos fazer a campanha com os profissionais e ampliar o levantamento. Precisamos aumentar a nossa percepção de que os problemas existem e não podemos nos omitir”, explica.

A entidade também quer evitar os casos de óbito por agressão. Um recorte de 2009 a 2014 feito pela SBP mostrou que ocorreram 35.855 encaminhamentos para hospitalização e 3.296 mortes no período. De acordo com a entidade, um grupo de trabalho formado por membros da SBP, do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem se reunido para desenvolver estratégias que possam reverter essa situação.

Informações

Juíza na Vara de Violência Doméstica e Familiar Leste 2, Tatiane Moreira Lima diz que muitas famílias ainda usam a agressão como forma de educar e que os pais precisam receber informações sobre métodos para solucionar conflitos. “Embora tenha leis proibindo, percebo que mães e pais que agridem passam a imagem de que é normal, que batem porque amam e querem corrigir. E isso é perpetuado nas famílias. Os pais precisam aprender a educar e interagir com essas crianças de forma que não seja por castigos físicos.”

De acordo com a juíza, as vítimas são, principalmente, do sexo feminino. “A mulher apanha ao longo de toda a sua vida. Dos pais, quando é criança. Dos parceiros, quando é adulta, e dos filhos, quando é idosa.”

Os dados levantados pela SBP realmente mostram as meninas como principais vítimas. Em 2017, foram notificadas 53.101 agressões contra meninas e 32.169 contra garotos.

Cicatrizes

No ano passado, o analista Jefferson Vicentini Leon, de 43 anos, e o companheiro adotaram dois irmãos gêmeos vítimas de agressão do pai biológico. As marcas do trauma ainda são visíveis – um deles tem leves cicatrizes no rosto. “Eles estão começando a aprender o que é gostar, o que é uma família, o que são as obrigações e os valores que as pessoas têm, porque só conheceram a violência e o desprezo”, diz sobre os filhos, que estão com 14 anos.

Por causa da rotina de agressões, a mãe dos jovens os abandonou em um abrigo quando eles tinham apenas 6 anos. Eles chegaram a ser adotados por uma família, mas foram devolvidos. Leon diz que também tem aprendido com os garotos.

“A convivência trouxe muito aprendizado de como ser humano, de como lidar com a dor e com o passado. A gente teve de se moldar para não trazer o sofrimento de volta e não omitir nada disso, porque é a história deles. Por mais que tenham sido momentos difíceis”, diz.

Capacitação

O levantamento organizado pela sociedade aponta ainda que as agressões ocorrem mais entre jovens de 10 a 14 anos e de 15 a 19 anos. Ao todo, foram 66.976 notificações em 2017. Em 2009, primeiro ano do levantamento, as duas faixas contabilizaram 9.309 registros.

Uma das sócias-fundadoras e voluntária da ONG Ciranda para o Amanhã, Isabella Britto afirma que os menores de idade que são encaminhados para esses abrigos têm dificuldade para conseguir uma família e precisam de suporte para iniciar uma nova vida ao atingir a maioridade.

“Ao completar 18 anos, eles são obrigados a deixar o abrigo e têm necessidade de ter uma capacitação, porque são obrigados a tocar a vida sozinhos.” Diante desse quadro, a entidade oferece, por exemplo, reforço escolar e capacitação para os adolescentes por meio do apadrinhamento das vítimas.

“Esse trabalho começou em dezembro de 2015 de uma maneira menos pretensiosa, com sacolinhas de Natal para trazer momentos de alegria e levando em bufês para colorir a realidade deles”, explica. A violência causa impactos devastadores, segundo Isabella. “Em exames simples e indolores, elas têm terror, gritam.”

Lei da Palmada

Em vigor desde 2014, a Lei Menino Bernardo, também chamada de Lei da Palmada, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabeleceu que crianças e adolescentes têm direito a receber cuidados e educação sem uso de castigos físicos nem tratamento cruel ou degradante. O nome da lei se refere a Bernardo Boldrini, morto aos 11 anos por ingestão excessiva de medicamentos. O pai e a madrasta foram condenados pelo crime. A punição engloba encaminhamento para programas de proteção à família, tratamento psicológico, participação em cursos e advertência. Os responsáveis podem perder a guarda da criança.

“A sociedade enxerga essa lei, mas ainda há quem diga que ela veio para tirar a autoridade dos pais. As pessoas entendem que não podem bater nas crianças, mas algumas acham que é melhor dar um tapa no filho do que ele apanhar da polícia ou de outras pessoas no futuro”, avalia Valdison Pereira, diretor jurídico da Associação Paulistana de Conselheiros e Ex-conselheiros Tutelares (APCT). Para Pereira, além do fortalecimento dos conselhos tutelares, delegacias especializadas deveriam ser criadas para atender esses casos. Em nota, a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP) informou que “as 133 Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) também atendem crianças e adolescentes”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.