02/05/2023 - 7:30
Em sua modesta residência na bloqueada Faixa de Gaza, Amina al Dabai recorda o mundo tão diferente em que cresceu há mais de sete décadas, antes da criação de Israel.
Nascida em 1934, Dabai era uma adolescente quando o Estado de Israel foi proclamado em 14 de maio de 1948.
Atualmente ela integra o grupo de 5,9 milhões de refugiados palestinos que vivem na Cisjordânia, Faixa de Gaza, Jordânia, Líbano e Síria, de acordo com os dados das Nações Unidas.
São descendentes dos mais de 760.000 palestinos que fugiram ou foram expulsos de suas casas há 75 anos.
O evento é conhecido entre os palestinos como a ‘Nakba’, a “catástrofe”, na qual mais de 600 comunidades foram destruídas ou despejadas pelas forças judaicas, segundo a organização israelense Zochrot.
A recordação da ‘Nakba’, em 15 de maio, se transformou em uma plataforma para as reivindicações de um Estado palestino.
A data é um dia após o aniversário da proclamação do Estado de Israel, em 1948, que desencadeou uma invasão de cinco exércitos árabes que a jovem nação conseguiu aplacar.
Antes do aniversário, a AFP conversou com oito palestinos na faixa de 80 e 90 anos, que seguiram para o exílio durante ‘Nakba’ na Faixa de Gaza.
– Soldados disfarçados –
Dabai recorda o dia em que “soldados judeus disfarçados”, chegaram a sua localidade natal em Lydda, atualmente conhecida como Lod, no centro de Israel.
Como os soldados estavam com os rostos cobertos com ‘kufiyas’, o lenço que se tornou um símbolo da luta palestina, os moradores pensaram que eram reforços enviados da Jordânia.
A população estava tão feliz que “correu para a fonte” no centro da localidade para comemorar. Mas ao perceber que eram soldados judeus, “fugiram para a mesquita e para suas casas”.
“Eles atacaram a mesquita e mataram todos que estavam dentro”, explica. “Eu era jovem e vi com meus próprios olhos”, acrescenta.
Deportação planejada, expulsão ou êxodo voluntário? Um massacre de centenas de civis e combatentes desarmados no qual as duas partes foram culpadas de atrocidades?
Os eventos de 12 e 13 de julho de 1948, durante a captura de Lod pelas forças israelenses, ainda são objeto de debate e intensa polêmica.
Uma coisa parece certa: quase da noite para o dia, a cidade foi esvaziada de seus 30.000 moradores árabes.
Depois da guerra, a Cisjordânia caiu sob o domínio da Jordânia e Gaza ficou sob controle do Egito.
“Vivíamos de maneira cômoda”, afirma Dabai, que lembra das crianças brincando no balanço, do mercado central e da água em uma grande fonte cercada por lojas.
Ela mantém o ressentimento sobre o que perdeu: “Éramos um país frágil, sem armas poderosas”.
Um dia após a chegada, os soldados israelenses retornaram com ordens claras: abandonem Lod ou morrerão, destaca a idosa.
“Nós dissemos que não queríamos partir. Eles disseram que nos matariam. Assim, todos os pobres marcharam e nós estávamos no meio deles”, explica.
A família fugiu a pé, caminhando durante vários dias até chegar à localidade cristã de Bir Zeit, perto de Ramallah, na Cisjordânia. Depois pretendiam seguir para o Egito.
Mas o trajeto era muito caro e a família terminou optando por ficar em Gaza. Como muitos palestinos, eles pensavam que voltariam em breve.
Apenas depois que os Acordos de Oslo estabeleceram a Autoridade Palestina na década de 1990, Dabai conseguiu uma permissão para visitar sua antiga residência em Lod.
“Coloquei a mão no muro da nossa casa e disse: ‘Meu amor, a casa do meu avô, está destruída e as casas dos nossos vizinhos estão habitadas por judeus'”, explica.
A mulher garante à AFP que não aceitaria nenhuma indenização pela perda de sua casa, mas acredita que mesmo sem esperança de que ela retornará, “as gerações futuras libertarão o país e voltarão”.
“Ninguém filmava os massacres e o que estava acontecendo, como acontece hoje”, afirma, com voz abalada.
– Um começo pacífico –
Umm Jaber Wishah nasceu em 1932 no vilarejo de Beit Affa, perto de Ashkelon, no que agora é o sul de Israel.
Décadas depois, ela relata com dor a convivência pacífica inicial.
Quando os judeus chegaram ao vilarejo, “não nos prejudicaram e nem nós os prejudicamos”, disse à AFP em sua casa no campo de refugiados de Bureikh, no centro da Faixa de Gaza.
“Os árabes trabalhavam para eles sem problemas, com segurança”, acrescenta.
Mas a convivência não durou muito tempo. A mulher ainda lembra com emoção do dia em 1948 em que a paz foi quebrada.
“Eu estava fazendo pão e eles cercaram a cidade”, explica, tentando conter as lágrimas.
Os soldados israelenses “começaram a cercar o vilarejo a partir do lado leste e nos protegemos dos tiros até o dia seguinte”, conta.
“Os homens foram amarrados e levados como prisioneiros, as crianças gritavam”, conta.
Beit Affa foi capturada pelas forças judaicas em julho de 1948 por vários dias. Vários habitantes fugiram antes da conquista definitiva da localidade nos meses seguintes.
Como em vários campos de refugiados na região, Bureikh mudou as barracas temporárias por estruturas permanentes de tijolo e madeira. Mas muitos ainda vivem na pobreza.
Wishah afirma que sua casa em Bureikh “não significa nada”. “Mesmo que me dessem toda a Faixa de Gaza em troca da minha casa, eu não aceitaria. Minha aldeia é Beit Affa”, diz ele.
“Mesmo se me dessem toda a Faixa de Gaza em troca da minha casa, eu não aceitaria. Meu vilarejo é Beit Affa”, diz.
– Chaves oxidadas –
Ibtihaj Dola, da cidade costeira de Jaffa, também recorda que morava ao lado dos judeus antes da criação de Israel.
Um de seus parentes políticos era judeu e a minoria judaica da cidade “falava árabe”, lembra a idosa de 88 anos.
Porém, um dia, quando retornava da escola, Dola encontrou a família preparando as malas para a fuga. Ainda com o uniforme escolar, ela embarcou em um navio para o Egito.
“Conheço Jaffa centímetro a centímetro”, conta, enquanto exibe quatro chaves oxidadas ao lado de sua cama no campo de refugiados de Al Shati, em Gaza.
Muitos deslocados acreditavam que seria algo temporário. Eles trancaram as portas de suas casas e levaram as grandes chaves de metal.
As chaves viraram um símbolo de sua situação e da demanda de retorno. Em muitas casas, as chaves são guardadas em uma caixa trancada embaixo da cama ou são recordadas com desenhos e bordados.
Israel afirma que os palestinos partiram voluntariamente durante os combates e nega as acusações de crimes de guerra contra seus soldados.
Também rejeita o direito de retorno dos palestinos, obstáculo frequente para as negociações de paz, e alega que seria como entregar de paz demograficamente a natureza judaica do Estado.
Os israelenses rejeitam com veemência o reconhecimento da ‘Nakba’, de acordo com a organização Zochrot, que trabalha para aumentar a conscientização da população sobre este período histórico.
Os israelenses “são ensinados em uma narrativa falsa e muito distorcida, mas convincente, de ‘uma terra sem povo para um povo sem terra'”, afirma a organização.
– “A injustiça não perdura” –
Hassan al Kilani, nascido em 1934 na localidade de Burayr, ao norte da Faixa de Gaza, disse que somente aceitaria uma indenização se houvesse um acordo político.
“Nós, árabes e palestinos, não podemos igualar a força de Israel, sejamos realistas”, afirma.
“Resistimos, mas nossa resistência é limitada quando comparada ao nosso inimigo”, insiste.
Ex-trabalhador do setor de construção, Kilani traçou um mapa de Burayr, anotando o nome de cada família, parcela por parcela.
O mapa está pendurado na parede da sala, uma recordação constante de onde cresceu.
“Todos os que ficaram no país foram assassinados (…) inclusive o gado, os camelos e as vacas”, afirma.
Em outra parede da sala, ele pendurou uma chave, o símbolo do sonhado retorno.
“A injustiça não perdura”, afirma, antes de expressar o desejo de “vitória”. “Mas estou velho. Quantos anos me restam de vida?”, pergunta.