É difícil para a psicóloga Anne de Bonneval, de 59 anos, falar sem se emocionar sobre os últimos dias no casarão da família Almeida Corrêa, um dos últimos a serem demolidos na Avenida Paulista para o alargamento da via. Era 1973 e a Paulista, já tomada por prédios, mudava o horizonte à medida que o progresso tomava conta. A família, no lote desde 1892, sentiu-se enjaulada em meio a tantos arranha-céus e a cedeu à pressão da modernidade. “Para nós, era um conto de fadas. Todo mundo ficou doente quando saiu de lá. Digo que estou doente até hoje.”

O casarão da família Almeida Corrêa tinha 6 mil metros quadrados, cinco salas, sete quartos, dois terraços e um porão com mais três salas onde funcionavam escritórios. Havia ali no porão uma biblioteca com 20 mil livros. O espaço hoje é ocupado por um prédio do Banco Central, cravado na esquina da Avenida Paulista com a Alameda Ministro Rocha Azevedo.

Os casarões das primeiras décadas da Paulista, aberta em 1891, são objeto de pesquisa de dois projetos. Lançada como site no mês passado, a série Avenida Paulista: casarões e edifícios investiga 80 casarões e os prédios que atualmente ocupam o local. Autora de um estudo que teve início em 2015, a pesquisadora Luciana Cotrim entrevistou 40 descendentes de famílias que moravam na avenida para entender o estilo de vida e as histórias dos antigos residentes.

Descobriu que não eram só barões de café: Luciana estudou as três gerações da Paulista, que teve um início bem diverso, sendo palco para imigrantes europeus e descendentes de famílias portuguesas. A partir de 1930, na segunda geração, abrigou famílias árabes que prosperaram no ramo de tecidos. E na terceira geração, a partir dos anos 1950, a avenida começa a se verticalizar.

Já o projeto Janela da História também retoma a Avenida do início do século 20, ao reconstruir a Paulista digitalmente, por computação gráfica, e seus casarões entre as décadas de 1900 a 1945. Com o projeto, o criador e publicitário Marcus Vinicius Uchôa quer que os visitantes façam um passeio imersivo na paisagem da via.

“Mais do que a reconstrução, quero mostrar como era viver em São Paulo naquela época e nesse período da história.” O próximo passo é criar um passeio virtual, em que as pessoas possam se sentir caminhando na Paulista daquela época.

Madeira

A primeira casa da Paulista foi um chalé pré-fabricado de madeira que veio de navio da Noruega por encomenda do engenheiro uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, um dos fundadores da avenida. Antes de ser residência, a “casa de pau” serviu para venda de lotes.

Ali morou a família da artesã Maria Eugênia Almeida, de 50 anos, tataraneta de Eugênio de Lima e bisneta do Ministro Rocha Azevedo – ambos ex-residentes da Paulista. Naquela época, as famílias que moravam na Paulista casavam entre si.

O porão da casa dos Rocha Azevedo era uma despensa tomada de alimentos, com pilhas e pilhas de produtos. Segundo a artesã, a casa era tão independente que, quando a febre espanhola atingiu São Paulo em 1918, a família fechou a casa e passou semanas sem precisar sair. “E ninguém morreu de gripe na família.”

No terreno da família, Yolanda Maria Alves de Lima de Almeida (mãe de Maria Eugênia) e Renata Eugenia Alves de Lima (tia) brincavam de bicicleta e patins. “Brinco que a minha mãe e a minha tia, que moraram ali, sofreram o primeiro caso de bullying que conheço. As crianças da vizinhança da Paulista caçoavam, dizendo que elas moravam em uma casa de pau”, explica Maria Eugênia.

A família inteira se mudou para o Rio no fim dos anos 1940 e ainda mora lá. O casarão hoje é um espaço para eventos. Famoso pelas decorações natalinas, já foi banco e está localizado na esquina com a Alameda Ministro Rocha Azevedo, ao lado do Parque Governador Mário Covas. Mãe e tia de Maria Eugênia, Yolanda e Renata estão hoje com 92 e 93 anos, respectivamente. Até hoje, as duas guardam as grandes chaves da casa, além de parte da mobília e documentos da época.

Vão livre

A escritora, tradutora e compositora Flora Figueiredo é a única neta viva do médico português José Borges de Figueiredo, um dos desbravadores que abriram a Avenida Paulista no fim do século 19 e dono do terreno onde hoje é o Masp. Ela quer desfazer um mito que, diz, tem se perpetuado ao longo das últimas décadas: o vão livre não nasceu no projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi. “Não é casual. Está cumprindo acordo feito à época com a Prefeitura”, diz.

Segundo Flora, o avô vendeu o terreno à Prefeitura por um preço irrisório, abaixo do que se fazia na época, desde que houvesse o compromisso da administração municipal em não tirar a vista da Paulista para o centro da capital, transformando em um parque aberto à população. Flora guarda o documento que comprova a venda sob condição. “É por isso que quando a Lina Bo Bardi foi construir o Masp teve de manter o vão.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.