13/09/2018 - 22:00
À frente do Ministério da Fazenda desde abril de 2018, o economista paulista Eduardo Guardia ficou conhecido pela rigidez com que buscou controlar os gastos durante sua longa carreira no setor público, iniciada nos anos 1990. Em entrevista exclusiva, Guardia defende as reformas microeconômicas e a estabilidade fiscal para destravar de vez o crescimento da economia.
DINHEIRO – Ministro, que País a equipe do Ministério da Fazenda encontrou, em 2016? E que País o sucessor ou sucessora do presidente Michel Temer vai encontrar?
EDUARDO GUARDIA – Quando chegamos ao governo, estávamos em uma profunda recessão. Em 2015 e em 2016 houve uma queda acumulada de 9% na renda real. Nenhum de nós havia visto isso antes. E é bom frisar que ela não foi causada por fatores externos, mas por um brutal descontrole das contas públicas em nível federal. Hoje, o grande problema do Brasil é fiscal. Não conseguimos arrecadar o suficiente para pagar as despesas correntes, muito menos os juros. Ou seja, estamos rolando as dívidas e nos endividando mais para financiar o déficit primário. Essa situação é insustentável.
DINHEIRO – Como resolver isso?
GUARDIA – Há duas maneiras: elevando a arrecadação ou cortando despesas. Um País que já tem uma carga tributária elevada não deve buscar o ajuste aumentando arrecadação. Então, o ajuste tem de ser por meio da despesa. A chave para isso é a Emenda Constitucional 95, que ficou conhecida como a do Teto dos Gastos. Se o teto for excedido em determinado ano, no ano seguinte haverá várias restrições. O Poder que excedeu o limite não poderá conceder reajustes, o salário mínimo só poderá ser reajustado pela inflação, não poderá criar programas nem contratar funcionários. Essas restrições farão a despesa voltar para baixo do teto. Esse é um legado importante para o próximo governo. Criamos um mecanismo extremamente eficiente para fazer a despesa cair.
DINHEIRO – E sem a reforma da Previdência, como fica a situação?
GUARDIA – Sem a reforma da Previdência teremos de elevar a carga tributária em 7% a 8% do PIB. A proposta atual permite economizar cerca de R$ 600 bilhões em dez anos. Essa economia não é linear, claro, mas o efeito é de R$ 60 bilhões por ano e isso é fundamental para sustentar o teto. A reforma da Previdência tem um efeito crescente. No primeiro ano, a economia é de uns R$ 10 bilhões, no segundo ano R$ 25 bilhões, vai aumentando, e no quarto ano serão mais de R$ 50 bilhões, comparados com a situação sem a reforma. É suficiente? Não, e nunca dissemos isso. Tem de cortar gastos de pessoal e despesas obrigatórias. Hoje temos um orçamento anual de R$ 1,4 trilhão de despesas primárias e só conseguimos mexer em
R$ 125 bilhões. Sem ajustes, a conta não fecha. Quero deixar claro que eu não estou falando, aqui, de cortar benefícios sociais.
DINHEIRO – Onde cortar?
GUARDIA – Há programas, como auxílio-doença e auxílio desemprego, que estão beneficiando pessoas que não teriam direito a receber. Esses programas foram criados sem gestão adequada. Fomos incluindo pessoas e dizendo ‘olha, você pode ficar durante tanto tempo, desde que atenda tais e tais condições’. Quem está checando se essas condições estão sendo atendidas ou se o tempo está adequado? Temos de colocar essas questões em pauta, temos de olhar a gestão de pessoas no setor público.
DINHEIRO – Onde mais?
GUARDIA – No BNDES, por exemplo. A conta dos subsídios cresceu muito devido à capitalização do BNDES, que recebia dinheiro do Tesouro e emprestava a uma taxa subsidiada. Quem pagava essa conta? O contribuinte. Então, reduzimos a conta do subsídio. Não é possível zerar, porque temos de honrar os compromissos do passado, mas o BNDES já devolveu R$ 280 bilhões ao Tesouro. Estamos reduzindo o tamanho do BNDES para voltar a ser o que era antes.
DINHEIRO – Qual o papel do BNDES?
GUARDIA – Ele é um banco de desenvolvimento. Tem um papel fundamental no financiamento das exportações, no financiamento da pequena e da média empresa. Também deveria ser um indutor de desenvolvimento do mercado de capitais, por exemplo, securitizando seus créditos. Agora, com a Taxa de Longo Prazo (TLP), ele pode fazer isso. Ele deve favorecer o investimento em startups, também em conjunto com o mercado de capitais. Na minha visão, o papel do BNDES não é receber recurso do Tesouro para subsidiar empresários que foram escolhidos para serem campeões nacionais. Se essa for uma política de Estado, que se coloque isso no Orçamento Geral da União e se deixe isso explícito. Eu discordo dessa política pública, mas, se a opção for fazer, tem de aparecer no orçamento. Não pode ser escondido.
DINHEIRO – É possível cortar despesas com o Congresso ameaçando aprovar as chamadas pautas-bomba?
GUARDIA – Eu estive no Congresso em meados de agosto, discutindo a Lei Kandir. Os secretários de Fazenda disseram ‘Queremos R$ 39 bilhões para compensação da Lei Kandir’. Eu respondi. ‘Tudo bem, é só me dizer de onde vamos tirar’. Essa é a beleza do teto, ele cria a disciplina dos gastos, porque ele é um mandamento constitucional. Não adianta continuarem pedindo coisas se não temos dinheiro para pagar. Isso tem ficar claro. É preciso reformar a Previdência. É preciso enfrentar o custeio dos servidores públicos, que sobe R$ 25 bilhões por ano. Não vai sobrar dinheiro. Há áreas preservadas, como saúde e educação, mas não é só isso que temos na administração pública. E falta falar da necessidade da reforma tributária.
DINHEIRO – Mas isso já não está sendo discutido?
GUARDIA – Não queremos resolver a questão fiscal pelo aumento de impostos. A reforma tributária se insere na discussão de produtividade, para reduzir os custos. Nosso sistema é regressivo e muito custoso, tanto para o contribuinte quanto para a administração pública. É preciso fazer uma reforma tributária ampla. É um tema complexo. A União e os Estados estão em uma situação fiscal difícil e ninguém quer abrir mão. O setor privado não pode pagar mais e o setor público não pode perder. Reforma tributária neutra não existe. Você pode nem aumentar a carga, mas alguém vai passar a pagar mais e alguém vai passar a pagar menos.
DINHEIRO – O que fazer?
GUARDIA – Eu tenho chamado a atenção para a questão dos gastos tributários, mais conhecidos como incentivos fiscais, em que determinados setores da economia têm regras de pagamento de imposto diferenciadas. Alguns casos são meritórios, outros, não. O problema é que gastamos muito, gastamos mal e não avaliamos nada. Essa conta é alta e vem crescendo exponencialmente. Em 2017, foram R$ 277 bilhões. Neste ano vai dar uns R$ 300 bilhões ou mais. Entre 2010 e 2015, o crescimento foi de 3,5% para 4,5% do PIB. Isso é mais do que o dobro da média da OCDE.
DINHEIRO – O próximo presidente terá condições de mudar isso?
GUARDIA – Não tenho a menor dúvida. Se não fizer, não governa. Porque o problema fiscal vai se agravar e isso vai se refletir em preços de ativos, no crescimento da economia, na taxa de juros, na inflação, em tudo. Então não tem alternativa. Esse é um legado nosso. Se tirarmos o mecanismo do teto, isso quer dizer que vai levar 20 anos para fazermos o ajuste das contas. Isso não será aceito por quem nos financia. A taxa de juros vai subir, a economia não vai crescer e tudo vai voltar para o ciclo negativo.
DINHEIRO – Os candidatos à sucessão do presidente Michel Temer estão dizendo que vão zerar o déficit em um ou dois anos. Isso é possível?
GUARDIA – Acho positivo dizer isso, pois mostra senso de urgência e compromisso com o tema. Imagino que quem está dizendo isso vai se esforçar para aprovar a reforma da Previdência e para manter o teto dos gastos. Nesse caso, estaremos na direção certa. Mas não sei como eles vão fazer. Não vi uma conta que reduza o déficit em um ou dois anos. No ano passado, tivemos de definir a meta do déficit primário para o próximo governo. Fomos conservadores, pressupomos o cumprimento do teto e a manutenção da arrecadação como está hoje. Não nos sentimos à vontade para estabelecer um número que obrigasse o próximo presidente a elevar impostos. Porém, é possível zerar o déficit primário em 2021. A partir de 2022 começaria a haver superávit primário. É possível fazer melhor? Sim, mas, para isso, será preciso arrecadar mais. Não tem mágica.
DINHEIRO – O País ainda depende muito de financiamento externo?
GUARDIA – Nós não temos problemas externos. O déficit de transações correntes é pequeno e é totalmente financiado pelo investimento estrangeiro direto. Temos reservas internacionais de 20% do PIB. A dívida externa é pequena. A do setor público é negativa, pois as reservas superam as obrigações a pagar, e a do setor privado tem hedge. Se as contas externas estivessem desarrumadas agora que há uma perspectiva de deterioração do cenário internacional, estaríamos em uma situação muito mais complicada devido ao desequilíbrio fiscal.
DINHEIRO – Estamos imunes a um tuíte do presidente americano, Donald Trump?
GUARDIA – Temos um lado externo robusto e isso é importante em momento de maior adversidade. Mas precisamos fortalecer os fundamentos da economia. Você não está imune para o resto da vida se não atacar os problemas que tem.
DINHEIRO – Quais os principais problemas, além do desequilíbrio das contas públicas?
GUARDIA – Há diversos fatores que minam a competitividade da economia brasileira. A notória deficiência da infraestrutura é um deles. A ineficiência de empresas estatais em setores-chave, é outro. O caso mais notório é o da Petrobras, mas temos um problema grave na Eletrobras, que ainda tem de ser resolvido. Encontramos setores relevantes muito desorganizados e, pior, com regulamentações inadequadas.
DINHEIRO – Por exemplo?
GUARDIA – O setor de óleo e gás, por exemplo, tinha uma exigência descabida de conteúdo local, o que gera custos para a economia. Os programas de privatização, de concessão e de parcerias público-privadas estavam paralisados. Nós não vamos enfrentar o desafio da infraestrutura no País se não atrairmos o setor privado para investir. Para isso, ter o ambiente macro em ordem não é suficiente. É preciso um ambiente regulatório adequado. Não adianta querer definir taxa de retorno para o setor privado.
DINHEIRO – Falando em crescimento. No primeiro debate eleitoral, a primeira pergunta para todos os candidatos foi como reduzir o desemprego. Nenhum deles conseguiu responder. Qual sua resposta?
GUARDIA – O crescimento de 1%,em 2017, ficou dentro do esperado. Infelizmente, a economia vai crescer menos do que esperávamos neste ano. Começamos 2018 achando que haveria um crescimento de 3%. Nossa estimativa, hoje, é de 1,6%. Saímos da pior recessão da história da economia brasileira. Nunca o PIB caiu dois anos seguidos na intensidade que observamos. Foi uma destruição de riquezas sem limite. Temos 13 milhões de desempregados, ninguém pode estar satisfeito com isso. Sabemos que a economia tem capacidade ociosa, então ela vai começar a crescer em cima desse excesso de capacidade. Dada a gravidade da crise, a criação de empregos é o último dado que deverá mostrar melhora. Porque a empresa começa a ampliar a produção partindo do excesso de capacidade, e só depois vai começar a contratar, à medida que for ganhando confiança na recuperação.
DINHEIRO – Como criar emprego? Quais seus prognósticos?
GUARDIA – Não tem mágica. Não há um caminho para gerar emprego que não seja a retomada do crescimento econômico com estabilidade, inflação baixa e regras claras. O desemprego vai cair. Mas, se nós adiarmos a solução das questões que vão nos permitir deslocar o potencial de crescimento da economia, vamos adiar a geração de empregos. O único caminho que vejo é o compromisso com as reformas fiscais, microeconômicas e abertura comercial. É assim que se gera emprego.
DINHEIRO – Qual é o crescimento potencial da economia?
GUARDIA – Nos últimos 20 anos, crescemos em média 2,4%. Suponha que vamos conseguir aprovar a reforma da Previdência e manter o teto dos gastos. Sem as reformas microeconômicas, nosso potencial é parecido com a média dos últimos 20 anos. É pouco. Para crescer mais, é preciso um ambiente de negócios propício ao crescimento. Para isso, é necessário avançar na agenda de reformas microeconômicas, que vai reduzir o custo Brasil. É necessário adotar um sistema tributário equilibrado, enfrentar o gargalo da infraestrutura, trazer investimento privado, privatizar para ter eficiência. É preciso estabelecer um marco regulatório para setores importantes, como fizemos no caso do petróleo e do gás.
DINHEIRO – E o que mais?
GUARDIA – Precisamos tomar medidas concretas para reduzir spread bancário. Precisamos fortalecer o instrumento da recuperação judicial, que reduz o risco de investir no País. Temos burocracia demais nos setores importador e exportador. O Ministério da Fazenda está atuando em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio para reduzir a burocracia. E há uma série de medidas que estão no Congresso. Por exemplo, o cadastro da duplicata eletrônica, que barateia o capital para o pequeno empresário, o cadastro positivo, que reduz os juros para as pessoas físicas, e os distratos no setor imobiliário, algo muito relevante em um setor que gera muitos empregos.
DINHEIRO – Qual o impacto disso?
GUARDIA – Isoladamente, essas medidas não mudam muito a produtividade. Porém, juntas, elas conseguem deslocar o crescimento potencial em até 1,5 ponto percentual. Então, saímos do patamar de 2,5% de crescimento anual para 3,5% ou mesmo 4%. Pense nisso. Com as reformas, poderíamos crescer 4% ao ano. Isso tem um efeito brutal na economia. Se não enfrentarmos esses temas, vamos ficar na mediocridade.
DINHEIRO – A necessidade das reformas microeconômicas é evidente. Por que é tão difícil aprovar essas mudanças?
GUARDIA – Essa agenda ficou parada durante anos, mas agora está andando. Eu gostaria que ela andasse mais rápidamente, é verdade, mas muita coisa foi aprovada nestes dois anos. A economia não voltou a crescer por acaso, as pessoas começaram a olhar o que estava sendo feito e avaliaram que o País tinha voltado a caminhar na direção certa. O rumo está certo, as coisas estão acontecendo.
DINHEIRO – Mesmo com a resistência do Congresso?
GUARDIA – O Congresso vem respondendo. O Congresso aprovou coisas importantes. Poderíamos discutir o ritmo, que poderia ser mais rápido, mas é ano eleitoral. As pessoas não estão lá, não há sessão toda semana. Mas faz parte da democracia.
DINHEIRO – O próximo presidente vai pegar uma estrada livre para acelerar?
GUARDIA – Se seguir no mesmo rumo, sim. Mas, se pegar o primeiro retorno, pode acelerar para o lado errado. Volto à primeira pergunta: qual o nosso legado? Nosso legado é tudo isso que está encaminhado. O próximo presidente poderá acelerar se mantiver o rumo do equilíbrio fiscal, da produtividade, da abertura comercial, do aumento do controle e da qualidade do gasto público, da revisão dos benefícios injustificáveis. A questão previdenciária não é só fiscal, é uma questão de igualdade. As pessoas mais equilibradas sabem o caminho que têm de seguir.