23/09/2018 - 13:58
Heitor tinha pouco mais de dois anos de vida quando foi diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA). No momento em que sua mãe, a paulista Josiane de Paula Mariano, recebeu a notícia, ela ainda não sabia, mas ali começava uma luta que envolvia não só as dificuldades para se dedicar mais ao filho como lidar com um sistema de saúde despreparado.
A não existência de protocolos, um rol de procedimentos limitados, falta de profissionais especializados e pouca informação marcam o cenário do atendimento à pessoa com o transtorno no Brasil. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada 160 crianças são autistas no mundo e, segundo pesquisa do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de abril deste ano, nos Estados Unidos, 1 em cada 59 crianças de oito anos têm autismo. Não existem dados específicos do Brasil.
Duas cartilhas do Ministério da Saúde dão as diretrizes para o tratamento de pessoas com TEA, que focam equipes multidisciplinares e atendimento individualizado, tanto na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na saúde suplementar. Uma delas é a Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com TEA e a outra é a Linha de cuidado para atenção às pessoas com TEA e suas famílias na rede de atenção psicossocial.
Entretanto, não há protocolos que digam quais métodos e passos devem ser aplicados no tratamento desses pacientes. E, para quem não depende da rede pública e custeia um convênio particular, a situação não fica mais fácil – ter acesso a todos os tratamentos exige trâmites burocráticos e vagarosas batalhas judiciais.
Essa foi a situação encontrada por Josiane e seu filho Heitor. Durante dois anos, o menino passou pelo tratamento que o plano disponibilizava, até que, em conversa com pais e pesquisas, ela descobriu a tal terapia ABA. Contatou o seu plano de saúde pedindo o custeio, que se negou justificando que as terapias de análise do comportamento não estão no rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde (ANS).
O ABA que Josiane ouviu falar é, na verdade, a sigla em inglês da análise do comportamento aplicada, um método de intervenção que pode ser usado em muitas esferas da sociedade, inclusive em terapias para autistas. O profissional responsável é um analista do comportamento, geralmente psicólogos, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos e fonoaudiólogos.
“Não existe uma estratégia única, porque ABA é uma ciência aplicada de maneira diferente para cada paciente”, detalha Luiza Guimarães, psicóloga que trabalha com crianças com TEA usando a abordagem da ABA. “O trabalho é totalmente individualizado e inclui uma série de estratégias para o ensino da criança. O ABA foca no aumento de repertórios que a criança tem déficit. Por exemplo, ela não consegue pedir por itens, como água, então a gente cria estratégias de pedidos que vão desde a comunicação alternativa, ou treinos de fala. Ou repertórios que a gente quer que diminuam, como comportamento agressivo, de bater na intenção de comunicação”.
“A gente vai tentar sempre criar estratégias que possam diminuir esses comportamentos que são problemas na vida do indivíduo e aumentar aqueles que precisam chegar a um nível mais funcional. Os resultados são surpreendentes, ela sempre vai apresentar alguma melhora de aumento de repertório”, fala Luiza, ressaltando que a análise de comportamento aplicada pode ser usada para todas as idades, mas que, quanto mais precoce o início do tratamento, que deve ser intensivo e regular, melhor.
Josiane entrou com uma ação judicial e, cerca de um mês depois, conseguiu uma liminar favorável para começar a terapia ABA. “Foi o único tratamento no qual eu vi evolução de fato no meu filho. Ele voltou a falar, conseguiu desenvolver várias habilidades que não tinha. Hoje, o Heitor vai fazer oito anos e frequenta uma escola regular e tudo isso é fruto de ter começado um tratamento adequado desde cedo”, celebra a mãe. Heitor, ela diz, tem uma rotina intensa: faz terapias ABA todos os dias, tem sessões de terapia ocupacional, fonoaudiologia e hidroterapia.
A advogada especializada em direito à saúde Estela Tolezani, explica que os planos negam o reembolso de terapias específicas ou limitam o número de sessões por causa do rol da ANS, mas isso está errado: “Os planos tratam o rol como se fosse taxativo, o direito do cliente considera que ele é exemplificativo e, felizmente, esse é o entendimento do judiciário. Então tem que entrar na Justiça para conseguir a cobertura integral”.
A especialista conta que, por isso, quase a totalidade dos casos que pedem o custeio pelo plano das terapias específicas para autistas tem resultados favoráveis aos clientes. “A pessoa precisa do profissional especializado, porque quem não é especializado para atender pacientes com TEA não vai suprir a necessidade”, comenta.
Assim como Josiane, Vivianne Abrilio também teve de batalhar na Justiça para conseguir direito às terapias as quais Miguel, hoje com três anos, tem direito. Durante a introdução alimentar, antes de completar um ano de idade, Miguel começou a recusar muitos alimentos. “Eu tenho um registro dele com sete meses e alguns dias, quando ele comeu fruta pela última vez. A partir de então, todas que a gente tentou, ele vomitou”, lembra.
Ela bateu na porta de muitos consultórios médicos sem obter respostas satisfatórias, até que uma gastropediatra levantou a hipótese do autismo. Aos dois anos, Miguel foi diagnosticado por uma neuropediatra que indicou a terapia ABA. “Fui atrás e vi que era tudo muito caro. Conversamos com uma clínica especializada, que informou que o plano tinha de pegar as terapias. Então, entrei com uma ação e, por meio de uma liminar, consegui o custeio”, relembra Vivianne.
A análise do comportamento aplicada ainda é pouco discutida no Brasil, mas nos Estados Unidos é muito popular tanto na oferta de serviços de saúde na prática – é comum ver profissionais especializados acompanhando crianças com TEA durante o dia todo, em casa e na escola – quanto na pesquisa científica. Aliás, foram lá que nasceram os primeiros estudos sobre o assunto, na década de 1960. Nos anos 1980, começou a ser analisado como pessoas com autismo poderiam se beneficiar da análise comportamental.
Pouco conhecida pelas pessoas de fora da área da saúde ou sem um parente com TEA, para quem está inserido nesses universos, a ABA é muito comum e alvo de discussões cada vez mais frequentes entre os órgãos de saúde suplementar.
O médico Cadri Massuda, representante da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge), explica que as operadoras ainda estão aprendendo, pois em meio ao que ele chama de “excesso de liminares”, há falta de informação sobre os profissionais envolvidos, o tempo necessário de terapias e a exigência ou não de especialização.
“O problema não é só para o método ABA, é para o autismo no geral. Está surgindo uma série de métodos, existe uma espécie de cartel de clínicas que está se aproveitando desse momento, existe um esquema de escritórios jurídicos se especializando em liminares desse tipo”, acusa Massuda.
Por isso, ele conta que representantes de planos de saúde e órgãos judiciais já estão em conversas para definir requisitos e protocolos. “Há necessidade de avaliações constantes para ver se há ou não melhora. Quem pode fazer? Precisa de um curso específico? Quanto tempo dura? Ainda estamos aprendendo. A partir do momento em que essas questões forem definidas, acaba o problema das liminares”, fala.
Apesar de a terapia ABA ser aplicada por profissionais como psicólogos, psicopedagogos e terapeutas ocupacionais, apenas médicos podem prescrevê-la e definir o número de sessões e duração do tratamento, por meio de laudos e avaliações regulares para verificar avanços.
O representante da Abramge diz que o próximo passo é incluir profissionais de diversas especialidades com habilidades para tratar pessoas com TEA na rede credenciada, já que hoje apenas clínicas particulares especializadas costumam oferecer o tratamento. “Estamos buscando profissionais dentro de casa. Se eu tenho essa demanda, vou usar a minha equipe para fazer o tratamento”, diz. “Isso nos preocupa porque está se diagnosticando cada vez mais. E, se aumenta o custo, todo mundo vai ter que pagar por isso, a sociedade vai ter que dividir essa conta”.
Atualmente, o rol da ANS garante aos pacientes autistas cobertura obrigatória de consultas e sessões com fonoaudiólogo (96 por ano), psicólogo ou terapeuta ocupacional (40 por ano) e psiquiatra (ilimitado).
Enquanto não há regulamentação sobre isso, as mães lutam como podem para que seus filhos tenham acesso a terapias adequadas. Há seis meses, Miguel tem sessões de fonoaudiologia, terapia ocupacional e terapia ABA, todas focadas em TEA. É uma rotina intensiva: são três horas por dia, de segunda a sexta, mas os aprendizados já começam a despontar. Miguel sempre se deu bem com os números, com menos de um ano já sabia contar até dez. Prefere os adultos às crianças.
“Ele não gosta de brincar, quer brincar falando do alfabeto, fazendo contas. Ele pegava os carrinhos e fazia uma fila por tamanho, cor, organizava, não sabia brincar”, conta a mãe. A terapia está mudando isso. “Ele melhorou a capacidade de perceber o outro. Antes, quando você chamava, ele não olhava, não atendia. Agora ele vai, pega o carrinho, imita o som. Ele não pedia para ir ao banheiro, agora já pede. É como se ele estivesse aprendendo a ser criança”, comemora a mãe.
Josiane conquistou uma sentença favorável no primeiro processo, mas há alguns meses teve início uma nova ação. Dessa vez, a luta é para conseguir profissionais de fonoaudiologia e terapia ocupacional especializados no atendimento a autistas. “Hoje, ele precisa de evoluções no tratamento. Eu não estou desmerecendo nenhum dos profissionais que atendem pelo plano, eles são muito capacitados. Só estou querendo que o plano pague profissionais especializados na área. Não é uma cura que eu quero, é uma condição, não vai haver cura. Eu só quero qualidade de vida para o meu filho, que ele seja independente e se desenvolva”, desabafa.