09/12/2018 - 14:30
Os brasileiros tomaram conhecimento do Ato Institucional de número 5 pelo anúncio do ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva. Era noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968.
Fora Gama e Silva que redigira o documento, suspendendo garantias constitucionais e fechando o Congresso por tempo indeterminado. Ele assim permaneceria até outubro do ano seguinte, quando reabriria – expurgado pela cassação de 98 deputados e 5 senadores – para referendar uma nova Constituição com mudanças, como a adoção da pena de morte.
Um dia antes, a Câmara dos Deputados negara por 216 votos a 141 a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, por seus discursos, considerados ofensivos às Forças Armadas. Vindo da casa da namorada, na Água Branca, na zona oeste, o professor de Direito Constitucional da USP José Afonso da Silva dirigia seu Fusca com o rádio ligado quando um locutor começou a ler o texto.
“Fiquei tão horrorizado com aquilo, porque é o instrumento mais violento que o País já teve, de certo modo, mais violento do que a Constituição do Getúlio Vargas. Dava um poder tão grande para o presidente fazer o que queria. E eles fizeram o que queriam, usaram e abusaram do Ato largamente, praticando os mais absurdos atos de autoritarismo.” Horas antes, o prédio do Estado, no centro, fora invadido por policiais que aprenderam sua edição em razão da recusa de Julio de Mesquita Filho de se submeter à ordem de trocar o editorial Instituições em Frangalhos. Começava a censura ao jornal.
Vinte anos depois, José Afonso estaria entre os assessores do senador Mário Covas, líder do PMDB, que ajudaram a sistematizar e redigir a Constituição de 1988. Para ele, a atual Carta é um “espelho invertido” do AI-5. A visão de que o arbítrio da ditadura militar engendrou a luta que se concluiu na promulgação da nova Constituição é compartilhada por outros juristas que lutaram pela redemocratização do País.
“Ela é o grande reverso do arbítrio. Garantiu direitos e valorizou como nenhuma outra no mundo os operadores do direito”, diz o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Francisco Rezek. Estudante de Direito, ele estava no meio do Atlântico, no navio Augusta, voltando ao Brasil após a primeira fase do doutorado na Sorbonne, em Paris, quando o comandante anunciou aos brasileiros a novidade. Eram quatro homens e três mulheres. “Alguns pensaram em não desembarcar.” Rezek seguiu para Minas. “O AI-5 desvelou por completo a face do regime, inaugurando uma ditadura escancarada.”
O que tornava o AI-5 diferente dos Atos anteriores não era a licença para cassar mandatos e direitos políticos ou para aposentar compulsoriamente magistrados, professores, militares, mas a suspensão de garantias, como a do habeas corpus, para acusados de delitos políticos e econômicos, além de retirar da Justiça a possibilidade de apreciar quaisquer atos do governo baseados no AI-5. Dezesseis ministros assinaram o documento, além do presidente Costa e Silva. Era a reação de um governo acuado por protestos estudantis, greves operárias e críticas da imprensa.
Ao aumento da oposição, o governo reagia com prisões, como a dos 720 estudantes no congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna, no interior paulista. Alunos do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas enfrentavam estudantes de esquerda da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antonia, no centro.
A batalha começou em 2 de outubro e acabou no dia seguinte, com o incêndio da prédio da Filosofia, atacado por coquetéis molotov lançados do Mackenzie. Dias depois, homens da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) executaram o capitão americano Charles Chandler, em São Paulo. Parte da esquerda pegava em armas contra o regime.
No Rio, a agitação estudantil crescera após o assassinato do estudante Edson Luis, quando a polícia invadiu um restaurante estudantil. No dia seguinte, 50 mil marcharam contra o regime. Em 21 de junho, nova manifestação terminaria com 4 mortos – um era policial. Cinco dias após, 100 mil sairiam às ruas em protesto. “Nossos alunos têm razão”, dizia uma das faixas. No mesmo dia, em São Paulo, a VPR lançou um carro-bomba contra o quartel do 2.º Exército, matando o soldado Mário Kozel Filho.
Belisário dos Santos Junior era um jovem estudante de direito quando ouviu com amigos a decretação do AI-5. Estava em um bar na Rua Iguatemi, no Itaim Bibi, na zona oeste, tomando um sorvete. O Ato fez dele um defensor de presos políticos. Ele mesmo acabaria detido pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, por causa de um documento que denunciava torturas impostas aos criminosos comuns do Presídio Tiradentes. Os interrogadores não lhe perguntaram nada sobre a petição assinada com outros sete advogados e enviada à Justiça Militar. “Só queriam saber quem nos pagava para fazer aquilo.”
A denúncia contra os advogados partira do juiz auditor Nelson Machado Guimarães, que recebera a petição. O grupo compareceu diante do Superior Tribunal Militar (STM), ainda no Rio, defendido pelo advogado Heleno Fragoso. “Senhores, em São Paulo, terrorista é a Justiça Militar”, disse Fragoso aos ministros do STM, que confirmaram a libertação de todos. Belisário se juntaria à luta pela anistia e pela Constituinte. “A Constituição é o momento de afirmação dos direitos e garantias. Antes, estavam no artigo 153. Com a nova carta passaram a ocupar o artigo 5.º, o que mostra a prioridade que receberam.”
Outro advogado que conheceu a prisão após o AI-5 foi Eros Grau. Era 1970 quando ele foi preso pela segunda vez – a primeira fora pouco após o golpe de 1964. Durou três dias. Grau era suspeito de ligações com o Partido Comunista Brasileiro, crime previsto na Lei de Segurança Nacional (LSN), que podia ser punido com até 2 anos de cadeia.
O empresário Dilson Funaro, então secretário de Planejamento do governador Abreu Sodré (Arena) pediu ao chefe a libertação do amigo. “Ele disse que ‘ou me soltavam ou se demitiria.’” Eros foi solto. “Perdi a chance de viver na França…” O então advogado da classe teatral se tornaria ministro do STF. “A Constituinte de 1988 rasgou tudo o que existia antes. Como no poema de Álvaro Moreyra: ‘A vida está toda errada/Vamos passá-la a limpos?’ Ela passou a limpo o passado. Virou aquela página. Ela significa o nascimento do novo.”
Vencidas as organizações que se opunham pelas armas, o regime iniciou a abertura. O AI-5 acabaria revogado em 1978 pelo presidente Ernesto Geisel. O último presidente do ciclo militar, João Figueiredo, assumiu prometendo “prender e arrebentar” quem fosse contra a redemocratização. Não fez uma coisa nem outra. Governaria até entregar o poder aos civis. “A Constituição (de 1969) estava comprometida com o autoritarismo.
Um remendo não daria a ela a visão que se tinha de adotar para a democratização do País. A eleição do Tancredo Neves, com seu discurso de Maceió, da Nova República, era a proposta para liquidar com os tais entulhos autoritários”, diz José Afonso. Com a morte de Tancredo, caberia ao vice, José Sarney convocar a Constituinte. Quatro anos depois, em 1988, estaria pronta a nova Constituição.
Generais do PSL
Os dois generais eleitos em outubro pelo PSL para a Câmara dos Deputados – Roberto Sebastião Peternelli Junior e Eliéser Girão Monteiro Filho – afirmaram que a adoção do Ato Institucional-5 (AI-5) foi necessária diante da conjuntura da época. “A conjuntura, infelizmente, com os movimentos revolucionários armados, fez com que Brasil precisasse do AI-5 para manter a democracia e se contrapor ao comunismo. Vivemos hoje um momento diferente, não há mais o risco de implantação de um regime comunista”, diz Girão.
Peternelli também culpa as ações armadas contra o regime. “Para aquele contexto, talvez, tenha sido uma medida necessária. O governo não tinha opção.” Ele afirma que o Exército “ao longo da história sempre defendeu a defesa da democracia”. “O compromisso com a democracia nos levou à Câmara pelo voto.” Cinquenta anos atrás, o Congresso também tinha dois oficiais generais quando foi fechado pelo AI-5: os marechais Amaury Kruel (MDB-GB) e Mendes de Moraes (Arena-GB).
O general Girão, no entanto, disse concordar com a crítica feita nos anos 1970 pelo general Peri Constant Bevilacqua, para quem o AI-5 “comprometeu os ideais de 31 de Março”. Ministro do Superior Tribunal Militar, Bevilacqua foi cassado pela ditadura, em 1968. “A terapêutica revolucionária agrava os males do doente – a democracia – quando não o mata”, afirmara.
“A prática da República é que vai aperfeiçoá-la. Para isso acontecer, os Poderes devem agir de forma independente. Infelizmente, a Nova República foi sepultada – com a causa mortis corrupção -, por partidos políticos formados por derrotados pela revolução de 1964, quando da tentativa de se implantar um regime comunista”, disse Girão.
Amordaçado pela ditadura, jornal luta pela liberdade
A edição do Ato Institucional-5 (AI-5) marcou, em 13 de dezembro de 1968, o início da censura sistemática à imprensa, que só acabaria dez anos depois. Houve pressão, ameaças e atentados contra O Estado de S. Paulo desde o golpe militar de 31 de março de 1964, mas os censores não frequentavam a Redação nesse período. A repressão chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves.
A censura no jornal O Estado de São Paulo começou, aliás, em 12 de dezembro, véspera do anúncio do AI-5. O chefe da Polícia Federal em São Paulo, general Sílvio Correia de Andrade, telefonou para a Redação para saber qual seria a manchete do dia seguinte. “Câmara nega; prontidão”, informou o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira.
O general deu-se por satisfeito, mas o jornal foi apreendido ao chegar às bancas, na madrugada seguinte. O general liberou o noticiário, mas não gostou do editorial Instituições em frangalhos, no qual o diretor do jornal, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, criticava o presidente Costa e Silva. “Era um texto duro e corajoso, que refletia a tradicional independência do jornal em relação aos governantes”, diz o jornalista Miguel Jorge, na época repórter do Jornal da Tarde, vespertino da empresa.
Foi o último editorial do Doutor Julinho. Ele deixou de escrever na seção Notas e Informações, na página 3, em protesto contra a censura. Revoltado com a apreensão do jornal, mandou seu filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Correia de Andrade que não faria autocensura.
Se o governo quisesse proibir alguma notícia, pusesse censores na Redação. Sua resistência custou caro. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai”, disse o jornalista Ruy Mesquita em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Ele caiu doente quando parou de escrever o editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5.
Os censores se instalaram na Redação na noite de 13 de dezembro, ao lado dos jornalistas atônitos que se agrupavam em frente da TV para assistir ao anúncio do AI-5. O locutor oficial Alberto Curi leu o texto do ato, ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da USP.
Recusa. Os jornais da família Mesquita não faziam autocensura. “Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem”, era essa a orientação. Os censores permaneceram no prédio da Rua Major Quedinho, sede do Estado no centro da cidade, até o dia 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram e só votaram em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censura prévia era feita por telefonemas da Polícia, bilhetes e listas de assuntos proibidos.
Como não se permitia deixar espaços em branco, recorria-se a textos aleatórios para mostrar aos leitores o que estava ocorrendo. Cartas inventadas pelos redatores, despachos judiciais, orientações de cultivo de flores interrompiam com destaque o noticiário nas páginas nobres, para cobrir o vazio de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.
Apesar do cerco policial, milhares de exemplares chegaram às ruas no dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra. “Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos uns 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição”, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, onde funcionava o jornal, no centro.
Também o JT foi proibido de circular e apreendido. Seus diretores se recusaram a trocar textos considerados “mais exaltados”, depois de terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título Mais uma demonstração de inviabilidade do regime. Repórteres e editores fizeram um esquema semelhante ao do Estado para garantir a distribuição. Enquanto a Polícia vigiava a Rua Major Quedinho, 84.900 exemplares escaparam pela Rua Martins Fontes, do outro lado do prédio.
O general Sílvio Correia de Andrade ficou furioso. Percorreu as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o JT pessoalmente. “Esse jornal traiu a Revolução”, gritava sem parar, conforme lembra Fernando Mitre, atual diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes.
Reação. O escritor e jornalista Ivan Ângelo, então secretário de Redação do JT, lembra a reação dos jornalistas. “Quando o censor entrou na sala, logo nos primeiros dias, todos nós nos retiramos, em sinal de protesto. O censor perguntou se o pessoal estava saindo por causa dele e eu disse que certamente sim, pois isso nunca havia ocorrido antes.”
Os jornalistas faziam o que podiam para infernizar a vida dos censores. “Contrabandeando informações que seriam censuradas no meio de outras matérias, em linguagem pouco usual – e não apenas isso, mas também esvaziando os quatro pneus do carro de um deles apenas para vê-los, da janela, suando a camisa num trabalho mais digno que aquele a que se haviam habituado “, disse Carlos Brickmann, repórter político.
Proibido de publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu em 1973 uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. “Agora é samba”, dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca. Legenda: “A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor”.
Os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema, Y – Juca Pirama, de Gonçalves Dias, saiu em destaque na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo apoio à literatura e ao cultivo de flores. Diante dessa reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura.
O redator Antônio Carvalho Mendes, responsável por uma coluna sobre cinofilia e pela seção de falecimentos, sugeriu a publicação repetida de versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. O poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da USP, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura. No JT, Ruy Mesquita optou pela publicação de receitas de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas.
Repórteres e correspondentes do Estado foram perseguidos por causa do seu trabalho. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Ernesto Geisel. “O Estadão se posicionou firmemente contra a ditadura e alguns de seus jornalistas foram torturados, como foi o meu caso, por defenderem a liberdade de imprensa”, disse Garcia. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, foi preso e torturado no Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, na mesma semana e local em que o jornalista Vladimir Herzog foi morto sob torturas.
Julio de Mesquita Neto resistia à censura e protestava contra a ditadura. “Meu pai aproveitava suas viagens para denunciar no exterior a falta de liberdade de imprensa no Brasil”, disse Júlio César Mesquita, lembrando discursos e pronunciamentos feitos na Europa e nos Estados Unidos. Pela sua coragem, Julio Neto ganhou o Prêmio Palma de Ouro da Liberdade, concedido pela Federação Internacional dos Editores de Jornais. No JT, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a PF baixou novas normas de censura à imprensa.
Dizia o texto:
“Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura…Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas…” Os militares ficaram furiosos, recorda Mitre, por terem sido chamados de nazistas e fascistas.
“Meu pai lutou contra a censura e contra todas as barbaridades do regime militar”, disse Ruy Mesquita Filho, o Ruyzito. Ainda adolescente na época, ele se lembra hoje de Ruy Mesquita falando aos berros, pelo telefone, com um general. “Meu pai defendia os jornalistas que eram presos e perseguidos. Os diretores do Estado e do Jornal da Tarde sabiam e denunciavam o que estava acontecendo. O prédio do Estado foi alvo de três bombas em atentados terroristas, de esquerda e de direita, em represália à sua posição em defesa da democracia”, acrescentou Ruyzito.
Missão
Correspondente em Buenos Aires, onde era exilado político e assinava seus textos com o pseudônimo de Julio Delgado, Flávio Tavares lembra como iludiu a censura, quando os Mesquitas não se dobraram à “inquisição” militar. “Usávamos todos os estratagemas para driblar a censura.” Em 1977, Flávio foi preso e torturado no Uruguai, acusado de espionagem, após ter entrevistado Leonel Brizola no exílio. Foi libertado por pressão do Estado, que enviou Júlio César Mesquita e advogados do escritório de Gerson Mendonça Neto a Montevidéu para resgatá-lo.
A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário do Estado. Era o cumprimento de um compromisso assumido pelo general Ernesto Geisel, ao assumir a Presidência em março de 1974. As dificuldades, porém, continuaram, até o fim do AI-5, em 1978.
O complô para cassar o deputado
A crise que levou à cassação dos dois últimos mandatos de deputados federais com base no AI-5 em 1977 foi o resultado de uma conspiração montada por integrantes da comunidade de informações da ditadura militar. O objetivo inicial era decapitar um parlamentar do MDB – Marcos Tito. Ele denunciara a ação da extrema-direita, que se alinhara em torno da ideia de impor o general Silvio Frota, então ministro do Exército, como candidato do governo à sucessão do presidente Ernesto Geisel (1974-1979).
As eleições eram indiretas e o presidente, eleito pelo Colégio Eleitoral em 1978. Quarenta e um anos depois, um ex-integrante do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) revelou a trama ao Estado. A entrevista, feita no Clube da Aeronáutica, no Rio, durou cinco horas e foi gravada. O coronel pediu anonimato. A história foi confirmada por outro oficial, que trabalhou 28 anos no Cisa.
“Realizamos algumas operações fundamentalmente de contrainteligência muito produtivas. Nenhuma com violência, mas foram operações que você faz para expor o inimigo a uma situação ridícula, que ele não contribuiu para aquilo, para desmoralizá-lo e acabar com ele”, diz o coronel. Entre essas operações, estava a que levou à cassação de Tito. “Ele estava assumindo uma posição que estava nos incomodando muito.”
Integrante da contrainteligência do Cisa, ele estava no setor desde sua criação como Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica, chefiado pelo então coronel João Paulo Moreira Burnier. Era julho de 1968. Permaneceu ali até 1979 como o agente Paulo Mário.
Na época, o emedebista havia discursado na Câmara afirmando: “Há evidentes sinais de que a extrema-direita articula-se para promover as condições necessárias a um novo surto de violência política”. Tito era vinculado ao grupo mais incisivo do MDB, conhecido como “autêntico”.
Desde 1964, 171 mandatos de parlamentares haviam sido cassados pelos governos militares, dos quais 104 foram com base no Ato Institucional-5. Para retirar do caminho o parlamentar de Minas – eleito em 1974 com 61.386 votos -, a Aeronáutica montou uma armadilha. Os oficiais da inteligência da Força apanharam a edição especial do jornal Voz Operária, de abril de 1977. Órgão oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na ilegalidade, ele era impresso na Europa e despachado por correio para o Brasil.
A edição trazia uma decisão do partido e um editorial sobre o Pacote de Abril, por meio do qual Geisel fechou o Congresso e aprovou reformas, como a ampliação do Senado com a nomeação de senadores – os biônicos -, garantindo maioria no Colégio Eleitoral. Também continha o Manifesto à Nação.
O texto afirmava: “No momento em que o Brasil atravessa uma crise cujas consequências e alcance são reconhecidos por todas as correntes políticas nacionais, os comunistas dirigem-se à nação com o objetivo de, ao lado de todos aqueles interessados na conquista da democracia, propor uma alternativa para a situação político-institucional em que o regime resultante do golpe de 1964 colocou o País”. Reescrito pelos militares, o texto perderia a palavra “comunistas” e teria “golpe” substituída por “movimento”. Dos 24 parágrafos, cinco foram suprimidos. As alterações, porém, ainda deixavam clara a origem do texto sem, no entanto, alertar o alvo da armadilha: Tito.
O próximo passo foi entregar o texto ao gabinete do parlamentar, que mantinha relações com estudantes e sindicalistas. “Levamos como se fosse coisa de estudante inconformado, pedindo para ele ler no plenário da Câmara. E ele caiu e leu.” O papel foi recebido por um assessor, que o repassou ao deputado. Em 24 de maio, o parlamentar subiu à tribuna e leu o discurso sem saber que era quase cópia da Voz Operária. Acusava o regime de ter como métodos o “medo e o arbítrio”. Sua fala atraiu a resposta do deputado Cantídio Sampaio (Arena-SP), que o chamou de “atrevido”.
Tudo parecia se encerrar ali. Dois dias após o discurso, os militares fizeram chegar ao deputado Silval Boaventura (Arena-MG) a informação de que Tito lera da tribuna o manifesto do PCB. Sinval denunciou o colega. Estava aberta a crise. “E acabou levando uma ferroada, acabou cassado e posto na rua”, conta o coronel. De fato, 21 dias depois, Geisel anunciou a cassação de Tito. “Na época, não havia desconfiança de que o texto tivesse sido plantado. Pareceu o plágio de um assessor. As forças mais radicais do regime criaram uma crise artificial”, diz o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ), então no MDB.
Necessário. A ação da comunidade de informações atendia ainda a outro motivo: provar que a infiltração comunista aumentava com a abertura e, assim, reforçar a “necessidade” de Frota ser o candidato do regime à sucessão de Geisel. “Queriam mostrar que tudo aquilo (o aparato do regime) era necessário”, disse o Doutor Pirilo, do Cisa. Entrevistado em julho de 2017, Pirilo morreu neste ano.
Treze dias depois, em 27 de junho de 1977, o MDB teria seu programa de TV. O presidente do partido, Ulysses Guimarães, foi duro com o governo e o líder da legenda na Câmara, Alencar Furtado (PR), protestou contra a cassação de Tito e outras e denunciou a chaga dos desaparecidos. “Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”, disse.
O desafio ao regime foi punido por Geisel. Em 30 de junho, Geisel anunciaria a decisão de processar Ulysses. “Ulysses não foi cassado porque sua figura tinha mais respaldo, por seu histórico. Vinha do PSD, presidia a legenda e tinha uma postura mais moderada. Alencar era mais duro, incisivo e acusador. Geisel usou as cassações porque precisava enfrentar os radicais entre os militares e mostrar que não era mole”, diz Alberto Goldman, então líder do MDB na Assembleia Legislativa. Furtado se tornaria o 173.º – e último – parlamentar cassado no País com base no AI-5.
3 Perguntas para Marcos Tito (ex-deputado federal MDB)
1.Oficiais do Cisa disseram que fizeram uma armadilha para que o sr. fosse cassado, plantando em seu gabinete o discurso com trechos da Voz Operária…
Eu fazia uma oposição muito dura à ditadura. Denunciava torturas e mortes. Eu recebia muitas solicitações de pronunciamentos, discursos e manifestações. Fiz vários. E fazia parte do grupo autêntico do MDB, com o Lysâneas Maciel, o Nadyr Rossetti, o Amaury Müller. Fui acusado pelo Geisel de ter sido apoiado pelo partido comunista. Os comunistas não iam apoiar a Arena, não é mesmo? Eles apoiavam quem? Apoiavam quem lutava contra a ditadura. Eles (os militares) usaram esse pretexto para me cassar. Não me arrependo nada do que fiz. Podem vasculhar minha vida; não tem nenhum ato de desonra.
2.O senhor tinha ideia de que foi vítima de uma armação?
Não tinha conhecimento, não. Eu supus que isso pudesse ser, sim, porque era uma forma de me caracterizar como representante do partido comunista.
3.De que forma a cassação afetou a sua vida?
Eu era jovem. Tinha 37 anos, um mandato e um cargo no Estado. Fui aposentado com 10% do salário – eu era fiscal de rendas – e tive de ir morar na casa da minha mãe, pois estava sem condição de sobreviver. Voltei à advocacia, mas as pessoas tinham medo de procurar meu escritório, porque naquela época o medo intimidava as pessoas. Morei dois anos com minha mãe para reorganizar minha vida. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.