28/03/2019 - 17:41
“O homem branco dá educação para os filhos na escola. Mas para a gente a educação é dentro de casa, com os mais velhos contando histórias para os filhos, netos, visitantes. Só que com o gerador, as comunidades estavam perdendo isso. É muito barulho, todo mundo corre quando está ligado. Agora não tem barulho, ninguém mais fica irritado. E o pessoal começou a contar história novamente.”
O relato do líder indígena Wareaiup Kaiabi, da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), resume uma das principais mudanças sentidas por aldeias do Xingu após passarem a contar, desde o ano passado, com energia solar.
Em 65 aldeias do território indígena, foram instalados 70 sistemas fotovoltaicos, o que, além de substituir parcialmente o uso dos geradores, aumentou a oferta de energia nas aldeias – tanto em tempo de uso ao longo do dia quanto em área atendida.
Em praticamente toda a Amazônia, tribos indígenas e comunidades mais isoladas, além de algumas cidades pequenas, dependem de geradores a diesel ou a gasolina para ter energia. Apesar de muitas vezes estarem localizadas perto de grandes hidrelétricas ou mesmo de linhões de energia, acabam fora do Sistema Interligado Nacional (SIN) por dificuldades de acesso e logística.
Cara, barulhenta e poluente, porém, a energia de geradores acaba sendo também um recurso escasso, restrito a poucas horas do dia, principalmente por questões econômicas – o combustível é encarecido pelo transporte de longas distâncias a locais de difícil acesso.
Por causa disso, diversos projetos-piloto têm levado nos últimos anos fontes alternativas de energia a essas comunidades. Mas em geral acabam sendo iniciativas isoladas, deixando em aberto a dúvida sobre como transformá-las em uma política pública para toda a região.
Na quarta-feira, 27, Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) lançou em Manaus um estudo socioeconômico sobre o projeto Xingu Solar, do Instituto Socioambiental (ISA), que mensura as vantagens e os impactos dessa mudança na vida das pessoas. No Território Indígena do Xingu (TIX), a energia usada até então vinha de sistemas a diesel ou a gasolina adquiridos pelos próprios indígenas ou fornecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.
Ganhos sociais
Num primeiro momento, o plano foi fornecer a energia para os prédios públicos, como as unidades de saúde, escolas, sedes da associação, casas de processamento de alimentos e postos da Funai. Casas individuais ainda não foram atendidas.
“Uma preocupação foi com a saúde, como manter a refrigeração de vacinas. Mapeamos as aldeias para pensar numa estratégia de transporte de vacinas ao longo do território para que elas pudessem estar sempre geladas”, conta Paulo Junqueira, do ISA.
Ainda na saúde, a ideia era ter, por exemplo, energia para garantir o funcionamento de aparelhos de inalação – insuficiência respiratória aguda já foi a principal causa de morte no Xingu, segundo Junqueira. E garantir energia para os casos médicos de emergência.
“Facilitou muito o atendimento às comunidades. Agora dá para estudar na escola à noite. Pegar vela para estudar era muito ruim, hoje está mais fácil”, concorda Wareaiup Kaiabi. “Mas bom mesmo é não ter mais barulho. Era muito, incomodava demais. Os mais velhos contavam isso pra gente. A energia solar parou o problema que estava acontecendo antes, com o gerador”, diz.
Junqueira destaca também a vantagem de poder carregar equipamentos, como lanternas e celulares. “Em algumas aldeias tem internet, mas mesmo sem sinal de celular, eles usam o aparelho como lanterna, gravador, filmadora, máquina fotográfica, para ouvir musica”, relata o pesquisador, que há mais de dez anos convive com os xinguanos.
O Iema fez entrevistas em 15 aldeias com 117 pessoas. Observou, por exemplo, que 53% dos indígenas que receberam a energia solar sentiram-se mais seguros no atendimento médico de urgência, contra 24% entre aqueles sem energia solar. Já na educação, 43% das aldeias com energia solar passaram a oferecer ensino noturno, contra 25% das demais.
Os pesquisadores ficaram preocupados também com possíveis impactos negativos. “Ouvimos relatos sobre mudança nas tradições alimentares. Antigamente, quando o pessoal chegava com muito peixe, logo havia uma distribuição e todo mundo comia. É uma generosidade que faz parte da tradição. Agora dá para guardar o alimento no freezer, o consumo fica um pouco mais individual”, diz Junqueira.
Ganhos econômicos
A partir da experiência do projeto, os pesquisadores do Iema estimaram também que uma produção de energia elétrica combinada a partir de geradores a diesel e painéis solares poderia gerar uma economia de mais de R$ 360 mil por ano em subsídios federais.
Eles consideram que o custo de energia gerada nesses sistemas isolados em reais / kilowatt-hora é mais alto do que a média de quem está dentro do SIN. Para que as pessoas que vivam nesses lugares possam pagar menos e ficarem mais ou menos equilibradas com quem vive dentro do sistema integrado, o governo criou encargos repassados a todos os consumidores de energia.
A conclusão do estudo é que um sistema menos dependente de combustíveis fósseis que viesse a ser ampliado a todos os 2 milhões de pessoas que estão fora do SIN hoje no Brasil poderia ser vantajoso para todos os consumidores.
“Muitas cidades da Amazônia só tem energia das 18h às 22h. A ideia do Xingu Solar era complementar o diesel. Em vez de apenas por 4 horas, seria possível ter a fonte solar durante o dia e, com bateria, diminuir a conta do diesel”, explica Pedro Bara, pesquisador do Iema.
Apesar de o sistema solar ser inicialmente mais caro que a compra de geradores, no médio prazo, a economia com o combustível fóssil logo compensa. Uma combinação dos dois é necessária para compensar os dias sem sol e falhas na bateria. O diesel funciona como garantia. Eles calcularam que o custo por unidade de energia elétrica gerada é de R$ 1,70 no diesel, de R$ 1,42 no sistema híbrido e de R$ 1,04 no solar.
“E os sistemas solares estão ficando cada vez mais competitivos. As taxas de retorno já são quase mais atrativas do que comprar geradores, que não vão mudar muito mais. Além disso, as tecnologias de baterias também estão se desenvolvendo muito rápido”, afirma Bara.
“A ideia é que esse tipo de iniciativa seja mais amplo, como política pública. Tem muito projeto piloto na Amazônia, que funciona na base da filantropia, mas nossa intenção foi mostrar que pode trazer um impacto para o bolso de todo mundo”, complementa.