13/10/2019 - 14:00
O primeiro requisito para uma pessoa, religiosa ou leiga, virar santa católica, como ocorre com a freira baiana Irmã Dulce, que será canonizada hoje pelo papa Francisco, em Roma, é o clamor popular em torno de sua existência. Um candidato a santo tem de ter alguma vinculação com a condição de ser venerado por alguma característica ou comportamento, religioso ou social, que o torne diferente entre fiéis e atraia devoção.
A partir daí, o processo de consolidação da imagem pública religiosa, que termina com a aprovação papal, depende formalmente de três condições básicas a serem consideradas pelo Vaticano: martirização, comprovação de milagres ou, ainda, decreto do papa.
“É o caso do português São Nuno de Santa Maria”, explica o frei carmelita Evaldo Xavier, um especialista em Direito Canônico. São Nuno também era carmelita e morreu aos 71 anos em 1431. Ele foi beatificado por decreto em 1918. A canonização, porém, só aconteceu quase um século depois, em 2009, pelo papa Bento XVI. “Nesses casos, o papa dispensa a comprovação de milagres”, afirma o frei. No Brasil, é o caso também de São José de Anchieta, jesuíta espanhol que morreu em 1597, canonizado como Apóstolo do Brasil em 2014 pelo papa Francisco. Anchieta, enviado ao Brasil quando tinha apenas 19 anos, foi declarado santo por ter uma vida dedicada à evangelização.
Pode-se ainda ser santo também por ter sido um mártir em função da fé, quando igualmente são dispensados milagres, prossegue frei Xavier. A Igreja tem casos recentes, de 2017, de reconhecimento de mártires como os padres André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, além do leigo Mateus Moreira, todos assassinados por soldados holandeses no século 17 no interior do Rio Grande do Norte. Com eles há ainda um grupo de 27 pessoas, homens, mulheres e crianças, todos tornados santos pelo mesmo motivo. São os Mártires de Cunhaú e Uruaçu. No caso do último dia 2, a menina cearense Benigna, de 12 anos, que sofreu abuso sexual no Crato, no interior do Estado, foi também beatificada pelo Vaticano como mártir.
Milagres
Por fim, um santo pode passar a existir formalmente para os fiéis católicos pela comprovação de milagres. Com um caso comprovado, torna-se beato. Para a canonização e posterior declaração de santidade, porém, é preciso a comprovação de um segundo milagre: é o caso de Santa Dulce dos Pobres. “Esse caso de Irmã Dulce foi muito rápido. Há santos que demoram séculos”, argumenta o frei.
Na relação de comprovações exigidas pelo Vaticano para a declaração de santidade por milagres, examinadas por historiadores e especialistas em Direito Canônico, segundo o frei Xavier, há também a necessidade de os documentos serem redigidos em latim. “É a língua oficial da Igreja”, diz.
O rol de santos, beatos, veneráveis e servos de Deus, pessoas destacadas pela fé na Igreja, é longo. O Brasil tem 36 santos, 37 com Dulce dos Pobres, além de uma lista de 52 beatos, outros 15 na condição de veneráveis, ou seja, com virtudes heroicas reconhecidas em processos na Igreja. E mais 68 pessoas têm processos abertos na Congregação (Servos de Deus). No grupo de santos mártires do RN havia mulheres e crianças, uma preocupação da Igreja com a família, diz dom Jaime Vieira Rocha, arcebispo de Natal, encarregado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) de chefiar a Congregação Para a Causa dos Santos no Brasil.
Entrevista: ‘O papa tem favorecido canonizações’
Dom Jaime Vieira Rocha, arcebispo de Natal, encarregado da Congregação Para a Causa dos Santos no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB), destaca a “celeridade” na canonização de Santa Dulce dos Pobres. “Ela fica em terceiro lugar, atrás apenas de Madre Teresa e de São João Paulo II”, lembra.
A quem se encaminha o pedido para ser santo?
Há uma Congregação de Roma, o Dicastério para a Causa dos Santos. É a referência para a qual devemos nos voltar e pedir assessoria e orientação, para aí encaminhar e instaurar os processos de beatificação e canonização na Igreja.
Quais as etapas?
Um exemplo: aqui em Natal temos um padre muito santo desde o século 19, padre João Maria, que morreu no século 20. Ele já é tido como santo de Natal. A partir daí, a Igreja precisa preparar o processo de sua futura beatificação e ele já passa a ser, para a Igreja onde viveu, onde está sendo registrada a piedade popular, a devoção ao milagre, um Servo de Cristo. Abre-se então o processo para beatificação. Iniciado o processo na Congregação, em Roma, ele vai ser visto como “venerável”. Aí o processo passa a ser de investigação, pesquisa e comprovação de milagres, virtudes heroicas, até ser beatificado. É preciso comprovar um milagre para ser beato. Depois, com outro, pode ter a graça da proclamação de santo.
É o caso de Irmã Dulce?
Atualmente, estamos muito voltados para esta realidade, que nos eleva para uma transcendência para a dimensão da fé, do povo de Deus, da vida da Igreja, porque temos a graça e a alegria da canonização da Santa Dulce dos Pobres. É muito importante porque a Irmã Dulce passou por essas etapas. O primeiro milagre, que serviu para a beatificação; o segundo, que serviu para a canonização. No mundo, o papa Francisco tem favorecido a canonização e beatificação de santos… canonizou Anchieta, dom Oscar Romero.
Olhando os tempos da Igreja, o processo ficou mais rápido?
Nesse caso, uma das peculiaridades é justamente a celeridade do processo. Ela ficou em terceiro lugar na história das canonizações e beatificações, com apenas 27 anos de estudos depois da morte, atrás apenas de São João Paulo II, 9 anos depois da morte, e Santa Teresa de Calcutá, 19 anos. É muito louvável.
Canonização e turismo
Desde que o papa Francisco anunciou, em maio, a canonização de Irmã Dulce, Salvador, onde a freira nasceu, viu crescer o turismo em espaços que marcaram a vida da religiosa. Foi no Largo de Roma, na Cidade Baixa, que a freira construiu sua vida. Lá estão as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), instituição que faz atendimento gratuito de saúde, e o Santuário de Dulce dos Pobres.
De maio até agora, o número de visitas explodiu. “A gente recebia cinco ônibus, de repente são 12, 18 – tudo sem avisar”, diz Rosa Brito, coordenadora de Turismo Religioso da Osid. O aumento de visitantes levou a Osid a criar um roteiro para relembrar os passos de Irmã Dulce, que viveu em Salvador até morrer, aos 77 anos. O ponto de partida é a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia – onde foi sepultada, em 1992.
De lá, o tour segue para a Igreja São João Paulo II, nos Alagados, bairro onde, em 1935, Irmã Dulce começou seu trabalho de assistência. Inclui ainda o Largo de Roma e a Capela das Relíquias, para onde foram transferidos os restos mortais da freira. Já a parada final é a famosa Igreja do Senhor do Bonfim, a 500 metros do Largo. O roteiro, em convênio com duas agências, custa de R$ 90 a R$ 170.
Totens
A prefeitura de Salvador também investe no Caminho da Fé, que liga o Bonfim ao Largo de Roma. A proposta é criar um espaço de oração para os fiéis, que poderão ver informações sobre a história do Bonfim e da Irmã Dulce nos 14 totens no trajeto. A caminhada leva 15 minutos – tempo para rezar um terço. E a obra deve terminar em abril de 2020.
João Paulo II
Quando esteve no Brasil em 1991, o papa João Paulo II disse que o País precisava “de santos, de muitos santos”. “A santidade é a prova mais clara, mais convincente, da vitalidade da Igreja em todos os tempos e em todos os lugares”, afirmou o pontífice, que àquela altura proclamava a beatificação de Madre Paulina, uma italiana com ampla atividade no religiosa no Brasil, que morreu em 1942, aos 77 anos, e foi canonizada em 2002.
Não demorou muito para que o próprio Karol Wojtyla, que morreu em 2005, virasse um santo. São João Paulo II foi canonizado em abril de 2014. A observação profética sobre o suprimento da carência brasileira de santos cumpre-se mais uma vez com a Igreja recebendo no Vaticano mais uma canonização hoje, a da baiana Irmã Dulce como Santa Dulce dos Pobres, em evento que inclui missa de Ação de Graças, às 5 horas deste domingo. A Igreja ainda prepara uma festa na Arena Fonte Nova, em Salvador, para comemorar a canonização do “Anjo Bom” da Bahia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.