17/02/2020 - 15:39
Confesso que adquiri recentemente (e tardiamente) o hábito de escutar podcasts. Sempre fui mais de leitura, mas, influenciado por amigos que admiro intelectual e pessoalmente, comecei a escutar coisas variadas aqui e ali. Como em tudo na vida, é preciso usar uma peneira: nem tudo vale o nosso tempo. Há, porém, coisas muito boas. Uma delas é a série “Value Investing with Legends”, liderada pelo Professor Tano Santos, da Columbia Business School.
No último episódio de 2019, o entrevistado foi o professor Bruce Greenwald. Autor de uma série de livros sobre o assunto, ele é grande influenciador de toda uma geração de investidores focados em Value Investing – incluindo a mim – e foi o líder da cadeira de Value Investing na Columbia durante muitos anos.
A uma certa altura, perto do final do episódio, a conversa passou a girar em torno do futuro do Value Investing. O professor Greenwald citou dois aspectos que estão, neste momento, transformando o futuro. Primeiro, ele defendeu que estamos passando por uma transição estrutural e dolorosa, onde deixamos de ser uma economia baseada na indústria de manufaturas para nos tornarmos uma economia baseada em serviços. Em segundo lugar, ele afirmou que uma economia baseada em serviços é, por natureza, geograficamente localizada. O investidor que se especializar geograficamente e em serviços estará do lado vencedor nessa equação.
Um dos exemplos disso é a General Electric, a GE. Conglomerado industrial incrível, atuam em aviação, saúde, energia renovável, óleo e gás, transportes e por aí vai. Empresa centenária, que emprega 283 mil pessoas em 162 plantas industriais nos Estados Unidos, além de 297 fábricas em 41 países. A ação da GE chegou a valer US$ 55 em 2000. No ano passado, chegou à mínima de US$ 7. Negocia hoje perto dos US$ 13, mas com muita gente boa por aí dizendo que vale US$ 5. E cortou o dividendo a zero. Em 2009, a empresa tinha um rating AA+ pela S&P Global; de lá para cá, caiu 3 graus na escala, para BBB+. Tem a mesma avaliação pela Fitch, porém com a perspectiva negativa. O professor avalia que uma das causas de a GE estar passando por esse sufoco é não ter percebido a transformação da economia, e ter continuado com o foco na manufatura e tecnologia sem observar o componente ‘serviço’ do seu negócio. Pelo que vejo nos materiais da companhia, o foco ainda não virou. A GE ainda se posiciona como a líder global em alta tecnologia industrial.
Nesse novo mundo mais regionalizado, ganhos de produtividade são menores: é muito mais difícil extrair produtividade de negócios descentralizados. Nessa linha, estratégias de dominação de mercados globais por meio de sinergias e ganhos de produtividade, que já foram bastante utilizadas nas últimas duas décadas, são menos eficazes. Vejamos por exemplo o caso da Kraft Heinz: a estratégia de comprar empresas similares, aumentando a grade de produtos e ganhando sinergia na manufatura não funcionou. E, apesar disso, ainda vejo a nova gestão apostando na mesma estratégia.
“O negócio é extremamente complexo. Estamos tentando ver quais são realmente as similaridades entre os nossos negócios para ver se podemos agrupá-los e dar um melhor propósito a esses grupos no futuro. Simplificando”, declarou o CEO Miguel Patricio em uma recente entrevista à Bloomberg. O ponto falho dessa estratégia, na minha visão, é que a receita do sucesso não está na sinergia dos negócios, mas no apelo (ou falta dele) dos produtos. Hoje, o natural e o orgânico têm preferência ao industrializado e processado. O consumidor tem preferências mesmo dentro do grupo dos industrializados: ninguém deixou de comer Oreo (a Mondelez vai muito bem, obrigado), mas pouca gente quer comer queijo industrializado. E a KHC não viu esse bonde passar, preocupada em ganhar sinergia na produção massificada de Mac and Cheese. A ação da companhia, que já chegou a valer US$ 97, hoje está a US$ 27. Somente no pregão de hoje, 13/2, caiu 7,5% depois de divulgar mais um trimestre decepcionante.
GE e Kraft podem se transformar? Acredito que sim. É um processo doloroso, que ainda vai levar a muitos write-offs. No entanto, elas provavelmente não serão mais as gigantes que um dia já foram.
Meu otimismo com a Apple, por exemplo, não vem da sua capacidade de produzir de maneira eficiente e vender cada vez mais iPhones, mas de cativar consumidores com os serviços que passou cada vez mais a oferecer. Além, é claro, da pilha de dinheiro acumulada. A Amazon, com o Amazon Prime, cativou o cliente pelo serviço, que é a entrega garantida em dois dias e a diversidade de escolha. Hoje, em alguns mercados, a entrega é feita por caminhões terceirizados pela própria Amazon e não mais pelas grandes empresas de transporte: mais um componente de serviço geograficamente localizado. Essas empresas estão em transformação constante.
Um exemplo de empresa que opera uma estratégia global para mercados locais? A Inditex, dona da marca Zara. Todas as lojas da Zara, em qualquer lugar do mundo, são iguais. Os produtos, porém, podem ser diferentes: cada região tem seu grau de customização. “Ter uma cadeia de suprimentos estável, altamente especializada, ágil e flexível é uma das chaves do modelo de negócios da Inditex e uma de nossas vantagens competitivas. É através disso que criamos e comercializamos moda customizada às preferências de nossos consumidores ao redor do mundo”, já dizia o Relatório Anual da companhia em 2018. Claro que a empresa opera em um ambiente extremamente competitivo, sujeito a todo tipo de ataques. De qualquer maneira, vale a pena acompanhar.
Nas palavras de Greenwald, as companhias que tiverem uma estratégia de dominação de mercados locais, um a um, e entenderem e desenvolverem o componente serviço dos seus negócios, serão as vencedoras da próxima década. Isso significa maior especialização e ganhos de produtividade menores. Para o investidor que se especializar geograficamente, e em serviços, isso é ótima notícia. Vamos ficar de olho.