Uma série de falhas e divergências entre os sistemas de registro de testes do Ministério da Saúde e dos Estados impede que o País saiba o número real de exames de coronavírus que foram realizados desde o início da pandemia.

Levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo com as 27 secretarias estaduais da Saúde do País e com o Ministério da Saúde descobriu problemas como duplicidade de registros, números não informados por incompatibilidade de sistemas e até casos em que exames para outros vírus respiratórios, como o da gripe, estão sendo contabilizados como testes do novo coronavírus.

O sistema oficial utilizado pelo governo federal para receber informações sobre os testes chama-se GAL, sigla para Gerenciador de Ambiente Laboratorial. É nele que os profissionais de saúde registram uma amostra quando atendem um paciente com suspeita de doença respiratória. Nessa fase, o exame é colhido e entra no sistema com o status de triagem. É responsabilidade do laboratório que recebe a amostra informar por meio do GAL que o material coletado passou para a fase de análise e, posteriormente, teve o resultado liberado.

O problema começa no fato de que nem todas as unidades de saúde e Estados são obrigados a utilizar o GAL. Com isso, nas estatísticas oficiais do Ministério da Saúde sobre o número de testados não entram exames feitos por laboratórios privados nem por Estados que, por livre escolha ou falta de opção, não utilizam o sistema.

É o caso do Distrito Federal e do Acre. No balanço federal enviado ao Estado na última quinta-feira, o DF aparecia com apenas 104 exames realizados. No levantamento do próprio Distrito Federal, porém, já tinham sido registrados naquela data mais de 15 mil – 5.100 do tipo RT-PCR (biologia molecular) e 10.508 testes rápidos.

A defasagem se dá por problemas de comunicação entre os sistemas utilizados pelo ministério e pela unidade da federação. “Com relação ao GAL, a não utilização dele é por conta de uma incompatibilidade com os sistemas já utilizados pela secretaria de Saúde. No entanto, a área técnica está trabalhando para realizar a migração o mais rápido possível”, informou a Secretaria da Saúde do DF.

No Acre, o GAL não está sendo usado porque o Laboratório Central do Estado (Lacen) está com equipamentos quebrados e não tem condições de processar as amostras dos casos suspeitos de covid-19.

Diante do problema, o governo estadual fez uma parceria emergencial com o laboratório Charles Mérieux para análise dos testes, mas, como a instituição não utiliza o sistema GAL, os exames realizados não estão entrando no balanço oficial do ministério. Enquanto a pasta federal afirmou que apenas 260 exames foram feitos no Acre, o Estado já diz ter realizado 1.443.

Outra razão para a divergência nos números de alguns Estados brasileiros é a falta de contabilização dos dados da rede privada. A diferença fica clara com a análise das estatísticas do Ceará. Enquanto o Ministério da Saúde registrava 9.733 exames feitos no Estado até o dia 23 de abril, a Secretaria da Saúde cearense já computava 13.381 diagnósticos, uma vez que seu balanço inclui os exames dos laboratórios particulares.

Inverso

Se há Estados que registram mais exames do que o balanço federal, há unidades da federação na situação inversa. O Paraná, por exemplo, havia feito até o dia 23 cerca de 10,9 mil testes, mas o balanço federal mostrava 16,6 mil. Segundo a Secretaria de Saúde do Estado, o número informado pelo governo federal está errado porque inclui também exames para outras doenças respiratórias.

A duplicidade de registros é outro problema citado pelos Estados e distorce principalmente os números de amostras na fase de análise. No caso de São Paulo, por exemplo, o ministério registrava 15 mil testes esperando análise no dia 20 de abril, quando a fila estava em torno de 5 mil exames, segundo Dimas Covas, diretor do Instituto Butantã e responsável pela rede de laboratórios de testagem paulista.

“O GAL não pode ser considerado um sistema de gerenciamento de análises clínicas, ele tem muitos problemas. Há várias inconsistências nos registros, há casos de duplicidade e até triplicidade, com o mesmo paciente sendo registrado três vezes porque teve três amostras colhidas – uma de cada narina e outra da orofaringe. Não há registro do CPF do paciente”, disse o diretor do Butantã.

No Rio Grande do Norte, problema similar foi relatado à reportagem: enquanto o ministério contabilizava no dia 20 de abril 2.823 amostras ainda em análise, o Estado afirmou que tinha na fila somente 117.

“É uma quantidade discrepante e irreal a informada pelo ministério. Praticamente não temos fila no Estado porque estamos conseguindo liberar os resultados em dois dias, em média. Acredito que o problema não seja o sistema em si, mas quem opera. Há uma rotatividade muito alta de profissionais nas unidades municipais. Sem padronização é muito difícil gerar uma informação de qualidade”, afirma Derley Galvão de Oliveira, diretor administrativo do Laboratório Central do Rio Grande do Norte.

Lacunas

O próprio ministério admitiu ao Estado que o sistema utilizado tem lacunas, mas alegou que, embora não seja utilizado por todos os Estados, o GAL tem alta adesão. “O sistema GAL não é de notificação compulsória. Embora seja um sistema por adesão, possui uma base de dados robusta, contando com mais de 30 mil usuários, utilizado por mais de 1.200 laboratórios, 4.664 municípios e 8.211 Unidade Básicas de Saúde (UBS). Mostra um retrato do gerenciamento de informações laboratoriais no Brasil. Assim, é esperada divergência entre os dados do sistema e aqueles próprios administrados pelos demais gestores”, informou a pasta, que disse que a atualização do sistema ocorre de forma dinâmica, a todo instante.

A pasta reconheceu que precisa melhorar o sistema de controle laboratorial e que atua para que o GAL traga, além de registros de laboratórios centrais dos Estados, os dados também das instituições privadas e de laboratórios de instituições de ensino. O ministério afirmou ainda que “trabalha para melhorar os seus sistemas de informação, incluindo a criação de um novo sistema de gerenciamento laboratorial, e em painéis de avaliação e monitoramento, inclusive com a parceria da equipe de tecnologia de informação da Petrobras”.

Comparação

O número de testes de coronavírus contabilizados pelo Ministério da Saúde era de 151.463 até o dia 23 de abril. Já o volume de exames informado pelos Estados para o mesmo período era de 178.345, segundo levantamento do Estado. Independentemente da fonte considerada, o Brasil tem uma taxa de testagem hoje de 29 a 13 vezes menor do que a da Alemanha, Itália, Estados Unidos e Coreia do Sul, países que vêm investindo na ampliação dos exames para monitoramento ou controle da pandemia de covid-19.

Os dados federais e estaduais indicam que o Brasil fez até agora entre 72 e 85 testes por 100 mil habitantes. Na Alemanha, essa taxa é de 2.497; na Itália, ela chega a 1.966; nos EUA, o índice é de 1.580; e na Coreia, de 1.141, segundo dados governamentais e do site Worldometers.

A escassez de testes e a falta de controle do governo brasileiro sobre o número de testados seguem sendo um problema mesmo após diversas declarações do novo ministro da Saúde, Nelson Teich, indicando que daria prioridade ao tema. Logo em seu primeiro discurso, ele ressaltou a importância da ampliação dos exames. “Para conhecer a doença, a gente vai ter de fazer um programa de testes. Esse programa vai ter que envolver o SUS, a saúde suplementar, a iniciativa do empresariado”, disse no dia 16.

Três dias após a posse de Teich, o ministério anunciou que ampliará para 46 milhões o número de kits de diagnóstico comprados, dos quais apenas 3,1 milhões estão previstos para serem entregues até quarta. Têm sido pouco discutidas, porém, as soluções para a dificuldade dos laboratórios públicos em processar rapidamente as amostras e a falta de um sistema inteligente de controle do número de testados no País.

Segundo especialistas, fica difícil entender o alcance real da epidemia sem essas informações. “A testagem é a principal ferramenta para confirmação dos dados e para qualquer decisão de organização da assistência e planejamento das próximas ações de controle. Está havendo um esforço das gestões estaduais e do ministério, mas precisamos de mais”, afirma Nereu Henrique Mansano, assessor técnico do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e responsável pela área de epidemiologia do órgão.

O cenário fez com que o ministro tivesse uma fala contestada nesta semana. Mesmo sem testes suficientes e alta subnotificação, Teich disse que “o Brasil é um dos países que melhor performa (sic) em relação à covid”, comparando o índice de mortes com o de países europeus. Como mostrou o Estado, a fala desagradou gestores da saúde e técnicos do ministério. Eles disseram que a comparação é incorreta, pois a falta de testes não permite afirmar quantos casos e mortes o País tem de fato. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.