08/05/2020 - 8:57
Com quase 95 anos, Anita Lasker-Wallfisch, sobrevivente da orquestra de mulheres de Auschwitz, é uma das grandes vozes que ainda hoje podem contar sua aterradora história nos campos de concentração. Por quatro décadas, porém, ela a manteve em segredo.
Nem mesmo seus dois filhos souberam, durante muito tempo, que sua mãe havia sobrevivido aos campos nazistas de Birkenau e de Bergen-Belsen, graças a seu amor pelo violoncelo.
Quando chegou a Auschwitz em 1943, esse instrumento lhe permitiu ser incorporada à orquestra de mulheres deportadas, que tocava marchas para os detentos, submetidos a trabalhos forçados, noite e dia, na entrada do campo de extermínio.
Anita Lasker-Wallfisch não perdeu em nada sua incrível vitalidade, que mantém mesmo ao telefone, quando responde às perguntas da AFP, de Londres, onde vive desde 1946. Sua viagem a Berlim teve de ser cancelada por causa da pandemia do coronavírus.
– Recomeçar –
“Não queria angustiar meus filhos com meu espantoso passado. Queria deixá-lo para trás”, explica Anita, em um alemão antigo. Ela educou sua prole em inglês.
O trauma da deportação estava “no ar”, mas não falou disso nem mesmo com seu marido, o pianista Peter Wallfisch.
“Tínhamos outras coisas para fazer. Retomamos nossa vida, partindo do zero”, relata.
Como explicar a loucura do homem? Como contar aos filhos que seus avós foram assassinados em abril de 1942, que, da tia Renate, restou apenas “um esqueleto com chagas abertas nas pernas”? Como lhes dizer que, aos 18 anos, reduzida ao simples código 69388, ela tocou em uma orquestra instalada “a alguns metros do crematório, com ampla visão para a rampa de seleção”?
Mas os filhos sabiam. Sua filha caçula, Maya, garante que sempre sentiu que havia um grande segredo. Maya cresceu com “pais incomuns”, que falavam alemão entre si, uma língua que seus filhos não entendem, e ao mesmo tempo odiavam tudo que procedia da Alemanha.
– Trauma sob sete chaves –
“Quando ouvia alguém falar alemão no ônibus, ou no metrô, [o semblante da minha mãe] se fechava imediatamente”, conta sua filha, autora do livro “Briefe nach Breslau” (“Cartas a Breslávia”, em tradução livre), no qual narra cartas escritas para seus avós. Eles viviam nessa pequena cidade, hoje pertencente à Polônia.
Quando pequena, seus amigos lhe perguntavam por que sua mãe tinha um número de telefone tatuado no antebraço. Um dia, revirando uma caixa, encontrou horríveis fotografias de Bergen-Belsen, para onde Anita foi “transferida” com sua irmã, em maio de 1944.
O segredo e o silêncio “nunca são saudáveis”, diz hoje a filha, de 62 anos.
“Eu absorvi, mas, claro, sem saber que era ‘tudo’ isso”, acrescenta Maya, que, depois de dar muita voltas, tornou-se psicanalista, especializada em traumas transgeracionais.
“O trauma não desaparece, ele fica trancado a chave […] Para algumas pessoas, é a única maneira de se manter em equilíbrio”, explica. “Mas as feridas do passado são profundas e podem voltar a aflorar na geração seguinte”, completa.
Anita garante que foi a música que salvou sua vida e também o que a levou a voltar à Alemanha, pela primeira vez, 43 anos depois de ter fugido do país.
“Não queria voltar para a Alemanha nunca mais”, afirma.
“Mas minha curiosidade para ver em que Bergen-Belsen tinha se transformado foi maior”, reconhece.
Assim, em julho de 1989, em função de um concerto na Orquestra da Câmara Inglesa cofundada por ela, voltou ao lugar onde morreu a adolescente judia Anne Frank.
Também voltou a sua cidade natal, Breslávia, e a Auschwitz-Birkenau, na atual Polônia.
Ver esse campo “vazio, sem ninguém, foi… irreal”, recorda.
Desde então, Anita Lasker-Wallfisch apareceu algumas vezes na televisão e falou em escolas de toda Alemanha.
Em janeiro de 2018, por ocasião do Dia Anual da Lembrança do Holocausto na Alemanha, ela fez um discurso histórico na Bundestag, diante dos deputados, incluindo mais de 90 do partido de extrema direita AfD. Eles haviam sido eleitos alguns meses antes, pela primeira vez.
Lá, a sobrevivente denunciou o antissemitismo, um “vírus de 2.000 anos manifestamente incurável” e concluiu, antes de uma longa ovação: “o ódio é, simplesmente, um veneno que acaba por nos envenenar”.