16/06/2020 - 16:00
“Um dia eu estava bem, parecia que tinha passado. No dia seguinte, acordava super cansada, com dor no corpo. Do nada você piora, do nada vem uma falta de ar, uma dor que faz nem conseguir levantar da cama.” O relato é da enfermeira Adriana Brito Leone, de São Paulo. Mas poderia ser da Rebeca, de Natal. Do Altair, de Niterói. Do Teddy, de Blumenau. Ou do Roberto, de Belém.
Todos engrossam a estatística das pessoas que já tiveram covid-19 no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, entre os mais de 730 mil casos confirmados oficialmente da doença no País, mais de 311 mil são considerados recuperados.
Nas últimas semanas, o governo federal tem feito questão de destacar o dado – mais até do que as informações sobre os novos casos e mortes -, tentando passar uma boa notícia. “O número de pessoas curadas tem crescido dia após dia devido aos esforços que o governo do Brasil tem empenhado em auxiliar estados e municípios a prepararem suas estruturas de saúde”, diz o ministério na nota diária que envia à imprensa com os números.
Mas especialistas e pacientes ouvidos pelo Estadão mostram que ser um “recuperado” não exatamente representa estar curado ou sem sequelas. Pacientes que foram entubados enfrentam um processo complicado de reabilitação, mas mesmo alguns que tiveram quadros considerados menos severos, e não demandaram hospitalização, relatam que a doença pode se manifestar por um tempo mais longo, com os sintomas voltando em ondas.
“O grande problema desses números é que, como só testamos quem procurou serviço médico, quem foi para o hospital, quando falamos em recuperados, estamos falando de quem teve alta hospitalar. Não significa alta médica. Os leitos precisam girar. Então às vezes o paciente sai ainda com algum sintoma, alguma queixa. Não estão aptos a voltar para o trabalho, voltar a fazer atividade física. São recuperados só da fase aguda da doença, mas é um processo gradual”, afirma Marcelo Sampaio, cardiologista da Beneficência Portuguesa (BP) de São Paulo.
Como a doença é ainda muito nova – os primeiros casos de infecção ao novo coronavírus são de dezembro do ano passado, na China -, não houve tempo para observar se podem ocorrer sequelas de longo prazo.
Já se sabe que a covid-19 pode ter uma manifestação sistêmica, causando não só sintomas respiratórios, como também afetar coração, cérebro, rins. Se são problemas reversíveis ou se, em algumas pessoas esses danos poderão ser duradouros ou permanentes, só daqui um tempo será possível saber.
Um grupo liderado pelo pneumologista Carlos de Carvalho, do Incor e do Hospital das Clínicas de São Paulo, pretende justamente identificar essas sequelas no longo prazo. Os pesquisadores pretendem acompanhar, por um ano, cerca de 2 mil pacientes que saírem do HC após a infecção de covid-19.
“Além de observar como se dá a recuperação da parte respiratória, vamos acompanhar se eles apresentam fraqueza muscular, problemas nefrológicos (rins), como se dá a recuperação neurológica (volta de olfato e paladar)”, afirma Carvalho.
Como parte do projeto, já estão sendo feitos estudos anátomo-patológicos – com tomografia, ressonância e biópsia – em alguns pacientes que vão a óbito para identificar o comprometimento que a covid causa em órgãos vitais. As descobertas vão orientar os cientistas sobre pontos que eles devem prestar atenção nos pacientes que serão acompanhados.
“A primeira etapa é a alta, mas os pacientes não saem zerados e podem ocorrer vários desfechos funcionais. Queremos saber quando a pessoa voltou a ter capacidade para trabalhar, para subir uma escada, tomar banho sozinha. Sabemos que alguns pacientes saem com certo grau de confusão mental, um pouco de delírio. Vamos acompanhar para saber quanto é reversível ou não”, diz.
Fadiga
Mesmo em pacientes que não chegaram a ser internados, os médicos têm notado que as queixas de fadiga e cansaço após fazer atividades simples têm durado mais do que os 14 dias normalmente descritos como de ocorrência dos quadros moderados a leves.
É o que ocorreu com Adriana. A enfermeira de 40 anos trabalhava na UTI do AC Camargo Cancer Center quando começou a sentir sintomas no dia 5 de maio. Três dias depois já tinha resultado positivo para covid-19. Duas semanas depois, voltou a fazer o exame, e continuava positivo. A mesma coisa se repetiu após mais uma semana.
O exame só foi dar negativo – ou seja, o vírus só tinha sido completamente eliminado do corpo dela – 28 dias depois do diagnóstico. E naquele dia ela ainda tossia e sentia dor muscular.
Seu quadro nunca chegou a ficar grave, mas os sintomas tampouco foram de uma “gripezinha”. No início, ela diz ter sentido muito cansaço e uma dor muito forte. “Começava na lombar e descia para as pernas. Parecia que estava rasgando meu músculo”, conta. Depois vieram a dor de cabeça, a falta de ar. Uma tomografia revelou que 25% do pulmão já estava comprometido.
“Não são só 14 dias. E a gente fica sem certeza de nada, se ainda está transmitindo, se pode piorar. Eu trabalhava em UTI, sentia na pele o que os pacientes estavam sentindo e morria de medo de ser entubada e parar lá dentro”, diz.
Uma página do Facebook chamada “Eu já tive covid-19” traz diversos relatos de pessoas que contam permanecerem com sintomas mais de um mês depois do diagnóstico. A arquiteta Rebeca Grilo, de 32 anos, de Natal, e o engenheiro elétrico Altair Ruiz, de 40 anos, de Niterói, afirmam que a sensação de fadiga é a mais duradoura.
Rebeca diz que sentiu os primeiros sintomas em 22 de abril. O diagnóstico foi confirmado com exame de PCR em 6 de maio e, como a oxigenação estava normal, foi orientada a ficar duas semanas em casa, isolada. Nesse período, ela piorou, voltou ao hospital para receber um pouco de oxigênio, mas, passado o período regulamentar de 14 dias da infecção, ela continuou tendo episódios ruins.
“Estou fazendo exercícios respiratórios desde o dia 29 de maio e senti uma melhora. Hoje já consigo falar ao telefone por 5 minutos sem sentir tanto cansaço, consigo tomar banho normalmente, mas não consigo subir um lance de escada sem me sentir exaurida. É como se tivesse subido 10 lances correndo. Ainda tenho episódios de tosse, dor de cabeça, dor de ouvido e dor no abdômen na região do fígado”, disse.
A situação de Ruiz é ainda mais prolongada. Ele diz ter sentido os primeiros sintomas ainda em março e foi diagnosticado clinicamente no começo de abril. Também não chegou a ser internado, mas não melhorou até hoje. “Ainda sinto dor nas costas. É uma fadiga debilitante, que não permite nem tomar banho direito”, conta.
Sem olfato nem paladar
O cervejeiro Teddy Tambosi, de Blumenau, teve uma situação sui generis. Perdeu, por um tempo bem maior do que os relatos mais comuns, os dois sentidos que mais usa em sua profissão: o olfato e o paladar. Foram mais de três semanas sem conseguir sentir nenhum aroma ou sabor.
Ele teve um quadro considerado leve de covid-19. Sentiu dores de cabeça, um certo peso para respirar, mas não teve febre. “A perda dos sentidos foi repentina e total. Um dia acordei sem eles. Não é como quando a gente fica resfriado, que não sente cheiros porque está com o nariz entupido. Eu cheirava pote de café e Vick Vaporub para ver se sentia algo e nada”, conta.
“Depois foi voltando, mas ainda não é 100%. Eu percebia que não estava sentindo todo o ‘potencial’ de um prato ou bebida. Sei disso pela minha memória olfativa. Chegou a bater um desespero de que nunca mais fosse voltar. Por trabalhar com cerveja, sempre presto atenção em aromas e sabores de tudo. Isso foi ruim demais.”
Recuperação pulmonar
Pacientes que chegaram ao ponto de serem entubados, com comprometimento da função pulmonar, também perdem massa e força muscular pelos muitos dias que ficam de cama, o que torna ainda mais lenta a recuperação.
É o caso do médico anestesista Roberto Guerra, de 70 anos. Morador de Belém, ele foi internado na capital paraense, mas teve de vir para São Paulo de avião, às pressas, quando sua situação ficou muito grave. Na Beneficência Portuguesa, foi atendido por Marcelo Carvalho. Foi quase um mês de hospitalização, oito dias entubado.
Mais de 75% de seu pulmão foi tomado pelo coronavírus. Ao ser extubado, ainda experimentou alucinações. Já está há um mês de volta a Belém e tem feito fisioterapia para recuperar tanto a força muscular quanto a função pulmonar. A expectativa, porém, é que a recuperação de seus pulmões leve de quatro a seis meses.
“A preocupação é que, se isso não for feito da forma adequada, eu fique com um quadro semelhante ao de DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica)”, afirma Guerra.
Ele conta que tomou cloroquina e azitromicina, que chamou de “medicações empíricas”, mas afirma que “não deram em nada, é papo furado”.
O médico admite que subestimou a doença no começo. “Confesso que achava meio igual ao Bolsonaro, que seria uma gripezinha passageira. Não é. Agora estou comendo, andando um pouco. Mas minhas mãos estão trêmulas, eu canso com facilidade, até a memória foi afetada. Não consigo nem me lembrar do período em que fiquei internado em Belém.”