05/08/2020 - 19:55
Ao ver feridos ensanguentados caídos nas ruas e enchendo os hospitais de Beirute, o cirurgião Antoine Qurban, machucado na cabeça, teve a impressão de reviver as cenas apocalípticas de seus anos no Afeganistão.
O sexagenário tomava café com um amigo nesta terça-feira, quando foi lançado a 20 metros de distância pela onda expansiva das explosões que destruíram o porto de Beirute e arredores. Ao receberem mais de 100 mortos e 4 mil feridos, os hospitais da cidade ficaram rapidamente saturados.
Com a cabeça sangrando, Qurban buscou atendimento em vários locais, até que um desconhecido o transportou de moto até o hospital Geitawi, onde cenas “apocalípticas” o aguardavam. “Vi feridos ensanguentados na beira de estradas e caídos no chão no pátio do hospital. Um médico suturou minha ferida quando eu estava sentado na rua, e depois de horas de espera”, contou.
“Lembrei do que me acostumei a ver anos atrás, durante minhas missões humanitárias no Afeganistão”, descreveu o médico. Na manhã de hoje, quando ele realizou exames no Hôtel-Dieu de Beirute, presenciou uma situação caótica. Nos corredores, viam-se mães preocupadas com crianças feridas. Aparentando estar perdido, um idoso procurava a mulher, que havia sido transferida para outro centro médico.
Os celulares não param de tocar. A cada conversa, vozes anônimas em meio à multidão repetem a mesma história. “Sobreviveu por milagre”, diz uma mulher. Angustiado com as chamadas incessantes, um ferido passa o telefone para a irmã: “Não consigo falar.”
– Anunciar as mortes –
Apenas o Hôtel-Dieu recebeu durante a noite 300 feridos e 13 mortos, segundo seu diretor médico, George Dabar. “Durante a guerra civil, fazia minha residência aqui. Nunca vi cenas como a de ontem”, contou à AFP o médico, instalado em frente ao seu computador. “É difícil dizer a um pai que tenta salvar a filha que ela já morreu.”
Para os hospitais libaneses, já afetados pela crise econômica e a pandemia do novo coronavírus, o drama de ontem representa uma catástrofe. Em outros dois centros médicos, cinco enfermeiras morreram enquanto trabalhavam, com a queda do teto e o impacto de estilhaços.
“As equipes médicas estão esgotadas com tudo o que acontece no país e o coronavírus. Mas frente à crise de ontem, a solidariedade é excepcional”, assinalou Dabar.
– ‘Hospital ferido’ –
Localizado próximo ao porto, o Hospital das irmãs do Rosário está fora de serviço, após ser devastado pelas explosões, assim como o hospital Saint-George, onde a noite foi infernal. O prédio, de vários andares, é apenas uma estrutura de cimento vazia, com tetos destruídos, que deixam à mostra a fiação elétrica.
Por todo lado, há vidros quebrados e escombros. As portas dos elevadores estão retorcidas. Quatro enfermeiras morreram no local. Até o amanhecer, funcionários trabalharam para transferir os pacientes, entre eles 20 com Covid-19. Hoje, os últimos instrumentos e equipamentos médicos eram removidos dos escombros.
“Não há nada mais difícil do que esvaziar um hospital cheio de pacientes quando, ao mesmo tempo, chegam feridos”, disse à AFP o diretor Eid Azar. “Somos um hospital ferido.”
Enfermeiras descreveram sua noite terrível, durante a qual o jardim e o pátio se tornaram um hospital de campanha para receber pacientes perdidos, obrigados a abandonar os leitos que ocupavam. Porque os elevadores não funcionavam, eles foram obrigados a descer vários andares de escada. “Temos que suturar os ferimentos dos pacientes e atendê-los com a lanterna dos nossos celulares”, contou a enfermeira Lara Daher.