09/08/2020 - 8:58
A 22 dias de deixar a direção-geral da Organização Mundial do Comércio – após sete anos no cargo -, o embaixador Roberto Azevêdo afirma acreditar que o protecionismo alavancado pela pandemia não deve se prolongar.
“A autossuficiência, em todas as etapas, não é sustentável e expõe a economia a choques de oferta e de preço”, diz. Para ele, os países devem, agora, procurar diversificar suas cadeias de suprimentos, o que pode dar oportunidades para o Brasil. O diplomata brasileiro decidiu deixar seu posto na OMC um ano antes do previsto para, segundo ele, dar mais tempo para que o órgão escolha seu sucessor, sem que o processo dispute atenção com os preparativos para a 12.ª Reunião Ministerial, que acontecerá em 2021. Sem detalhar, afirma que seu próximo projeto não será no Brasil nem em Genebra. A seguir, trechos da entrevista concedia ao Estadão por e-mail.
O cenário do comércio internacional já estava conturbado antes da pandemia, com tensões entre EUA e China e com os EUA esvaziando a OMC. Diante desse cenário, como fortalecer a ordem comercial internacional baseada em regras? É possível fortalecer o comércio multilateral enquanto vivermos essa onda nacionalista/populista?
Sem dúvida a pandemia conturbou ainda mais o cenário comercial internacional. Mas ela também mostrou que não há saída sem cooperação, sem soluções coordenadas. Está evidente que ações que até fazem sentido numa emergência isolada chegam a ser contraproducentes em uma crise global. Medidas de restrição ao comércio, por exemplo, rompem as cadeias de suprimentos, atrapalham a eficiência da produção e reduzem a oferta de produtos a preços acessíveis. Isso prolonga a crise econômica e de saúde. Mas tudo isso não é novo. Já vimos em crises anteriores. Precisamos deixar as gerações futuras melhor equipadas, com instrumentos de concertação ágeis, automáticos e eficazes. Essa lição precisa ser finalmente aprendida.
Como seria uma OMC eficiente para os dias atuais? A pandemia mudou as necessidades? Quando se fala na reforma da OMC, quais mudanças são essenciais?
Eu sempre defendi que a OMC precisa ser mais ágil e responsiva. Precisa estar apta para responder às novas demandas da economia contemporânea, que passa por profundas transformações. A pandemia está acelerando diversas tendências – como, por exemplo, o fortalecimento da economia digital. Vemos o crescimento das plataformas digitais e do comércio eletrônico; novos hábitos e processos, como teletrabalho, consumo on-line, impressão 3D, distanciamento social. Existe um “novo normal” em formação. A OMC tem de se adaptar a tudo isso
A pandemia acirrou as tensões entre EUA e China. Uma nova fase na guerra comercial é provável?
A pandemia está causando a maior recessão mundial em tempos de paz, com consequências comerciais e sociais dramáticas. Isso certamente impacta o diálogo bilateral e os entendimentos alcançados. A implementação de alguns compromissos assumidos de parte a parte poderia se ver dificultada pelas medidas necessárias para conter a pandemia. Mas entendo que há disposição para retomar as conversações. Vamos ver como isso evoluirá.
A pandemia e a crise na OMC, com o Órgão de Apelação paralisado, podem favorecer o protecionismo. É possível evitar essa tendência? Se houver um aumento no protecionismo, qual será o impacto para países emergentes como o Brasil?
A insegurança causada pela pandemia pode levar alguns governos, num primeiro momento, a buscarem a autossuficiência em setores considerados essenciais. Mas acredito que isso terá vida curta. A autossuficiência, em todas as etapas, além de raramente possível, não é sustentável e expõe a economia a novos choques de oferta e de preço. O comércio internacional é vital para viabilizar escala de produção e o abastecimento de produtos a preços acessíveis. Certamente, os atores econômicos buscarão diversificar suas cadeias de suprimentos, para reduzir riscos de desabastecimento e tirar mais proveito das redes globais. Esse movimento poderá abrir oportunidades para diversos países, inclusive o Brasil. Mas é preciso se preparar para aproveitar essas oportunidades.
Trump já ameaçou retirar os EUA da OMC. Dado que seu discurso contra órgãos multilaterais ganhou força durante a pandemia, o que ocorreria com o órgão e com o comércio multilateral caso os EUA realmente o deixassem?
O que escuto dos EUA é uma frustração muito grande com os organismos multilaterais. Frustração com os tempos do multilateralismo e com a ausência de regras para lidar com uma nova realidade econômica que se esboça. A isso se soma agora uma crise global de saúde pública, com enormes consequências sociais e econômicas. Os governos estão sob muita pressão. A elevação no tom das críticas é natural. Concretamente, na OMC, os EUA seguem muito ativos – inclusive negociando ativamente novas regras sobre comércio eletrônico, por exemplo. Defendem com veemência uma reforma profunda do sistema, o que não será nada fácil, e isso não se consegue estando fora.
O comércio multilateral já viveu momento tão difícil, tanto do ponto de vista político como econômico, como o atual?
Na história mais recente, do último século por exemplo, vivemos momentos dramáticos de escalada política de tensões comerciais. O sistema multilateral de comércio foi criado logo após a Segunda Guerra Mundial justamente para evitar desdobramentos dessa natureza. Em 2008-2009, a crise também foi severa, mas mais do ponto vista econômico do que político. A existência de regras claras e de mecanismos globais de concertação evitou a escalada das tensões. O quadro hoje é igualmente severo, mas diferente. A crise atual, por exemplo, não decorre de desalinhamentos ou vulnerabilidades nos fundamentos da economia global. Enfrentamos choques de oferta e demanda, mas o motor econômico vinha funcionando razoavelmente bem. A depender do tempo que durará essa pandemia, a queda no comércio poderá ser menor do que a dos anos 1930, com uma recuperação mais rápida do que em crises anteriores. Mas o ambiente geral é de muita incerteza, e de profundas transformações. Passamos, há alguns anos, por uma reorganização estrutural em diversas frentes, que tem gerado fortes tensões econômicas, comerciais e também sociais. Precisamos nos certificar que o sistema multilateral siga desempenhando seu papel, garantindo que tudo isso não escale politicamente. Espero que tenhamos aprendido a lição com a história.
Qual seu principal legado na OMC?
Acredito que, primeiro, os acordos concluídos e, tão ou mais importante, a mudança na cultura negociadora da Organização, que começou a partir do meu segundo mandato. Desde que assumi, fechamos acordos de peso no comércio mundial – após 18 anos de paralisia. Posso citar o Acordo de Facilitação de Comércio, a abolição dos subsídios às exportações agrícolas, a expansão do Acordo de Tecnologia da Informação. Mas também plantamos as sementes para a modernização da OMC, com olhos no futuro. O lançamento de negociações plurilaterais em comércio eletrônico, facilitação de investimento, regulação doméstica em serviços, são alguns exemplos dessas conquistas. O processo de reforma da Organização também é. A economia passa por mudanças vertiginosas. A OMC precisa se adaptar, ou se tornará obsoleta e incapaz de seguir cumprindo sua missão – expondo-se ao risco de ser suplantada.
Há rumores de que o sr. deve atuar no Alibaba depois que deixar a OMC. É verdade? Quais são os planos?
Eu ainda estou considerando diferentes projetos interessantes que me foram propostos. Coisas diferentes. Posso adiantar que meu próximo projeto não será nem no Brasil nem em Genebra. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.