16/08/2020 - 7:40
Líderes populistas “inteligentes” e preocupados com a gestão de seus governos, e não só com “guerras culturais” podem aproveitar a pandemia do novo coronavírus para concentrar poderes e reforçar seu autoritarismo, à maneira do que está fazendo Viktor Órban na Hungria. O alerta é do cientista político alemão Jan-Werner Müeller, uma das principais referências mundiais no debate sobre a ascensão de líderes considerados populistas e que chegaram ao poder surfando ondas de revolta contra o sistema político, como Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil.
Depois de escrever O que é populismo?, lançado no mesmo ano da eleição de Trump, Mueller, professor da Universidade Princeton, está fazendo pesquisa para um novo livro. Nele, vai discutir propostas para revigorar os partidos políticos e a imprensa – dois pilares cruciais, segundo Mueller, das democracias liberais, mas ambos em crise.
Em entrevista, por e-mail, ao jornal O Estado de S. Paulo, ele discutiu possíveis efeitos da pandemia para líderes populistas.
A pandemia do coronavírus vai levar a mudanças ou reforçará tendências em andamento, como a ascensão de líderes populistas autoritários?
Acho que isso dependerá de muitas variáveis e os contextos nacionais ainda são muito importantes. Líderes populistas inteligentes, com conhecimento de governo e de administração – como Viktor Orbán, na Hungria – estão aproveitando a situação para consolidar seu poder. Mas populistas interessados principalmente na guerra cultural e profundamente desinteressados das questões de governo e da administração – como Trump e Bolsonaro – não estão indo bem.
A resposta à pandemia ditará quais líderes populistas permanecerão no governo e quais vão concentrar mais poder?
Os populistas experientes usaram o momento para aumentar seus poderes – não há dúvida sobre isso. Mas não há garantia de que, apesar de toda a repressão, eles vão se manter. Estamos apenas começando a ver o início das consequências econômicas da pandemia. E os cidadãos podem ficar muito insatisfeitos com líderes que dizem que lutam por “pessoas comuns”, mas operam, na realidade, como cleptocratas e apenas reforçam ainda mais as políticas neoliberais.
A menos de três meses da eleição presidencial nos Estados Unidos, Joe Biden, do Partido Democrata, é hoje o favorito. Por que a guerra cultural promovida pela direita americana até agora não produz os mesmos resultados de outras campanhas eleitorais?
É um momento muito perigoso e, ao mesmo tempo, de muita esperança nos EUA. É perigoso porque, num sistema bipartidário, um dos partidos passou a se opor a princípios democráticos básicos. Trump não é a causa, mas um sintoma da crise do Partido Republicano, que virou uma agremiação dedicada ao populismo plutocrático. Ao mesmo tempo, é um momento esperançoso porque a mensagem de movimentos como o “Black Lives Matter” passou a ecoar. Os observadores têm razão em dizer que Biden dificilmente é uma figura progressista inspiradora. Mas Lyndon Johnson ou, até certo ponto, Franklin Delano Roosevelt também não eram. O que importa é que eles promoveram mudanças porque os movimentos sociais continuaram a pressioná-los.
Qual pode ser o impacto político de uma eventual derrota de Trump para outros movimentos populistas de direita no mundo?
É ingênuo pensar que uma derrota de Trump necessariamente prejudicará outros autoritários populistas. Repito que os contextos nacionais são importantes. Uma coisa, porém, provavelmente mudará: os EUA deixarão de sinalizar aos ditadores que a democracia não importa.
No Brasil, Bolsonaro também tem resultados ruins no enfrentamento à pandemia, mas mostrou resiliência política. Quão importante é a guerra cultural como ferramenta de luta política?
Os populistas dizem que eles, e somente eles, representam o “verdadeiro povo”. Para eles, no entanto, o “povo” não é formado por todos. Minorias consideradas indesejadas ou pessoas com ideias de esquerda são excluídas. O modelo político dos populistas é dividir as pessoas e marcar uma fronteira entre quem realmente pertence ao “povo” e quem não. A guerra cultural é realmente muito importante para eles, mas, por si só, não vence eleições.
A pandemia do coronavírus ocorre em um ambiente em que a desinformação é promovida com fins políticos e a imprensa está sendo atacada por líderes autoritários. Que efeito a pandemia terá para o jornalismo profissional?
Em tese, a pandemia deve levar os cidadãos a perceber o quão importante são as notícias precisas (não apenas os fatos, mas também as interpretações de especialistas). O jornalismo que reporta as notícias locais é especialmente importante e sofreu tremendamente porque Google e Facebook acabaram com seu modelo de negócios baseado na publicidade. Essa percepção abstrata, porém, não é, obviamente, suficiente; é preciso haver uma pressão política por novas regulamentações – como tributar o Google e o Facebook para que noticiários locais sejam subsidiados de forma adequada.
Bolsonaro não tem partido para apoiá-lo, mas seu governo está cheio de oficiais das Forças Armadas. Isso aumenta o risco de uma deriva autoritária no Brasil?
De maneira mais geral, diria que estamos vendo o surgimento de uma arte populista de governança – resultado do fato de que os líderes populistas também podem aprender uns com os outros. Na maioria das vezes, os militares têm sido marginais nesta nova arte (ou foram conscientemente subjugados, como no caso da Turquia). Os populistas têm preferido colonizar a administração do Estado e usar a economia para exercer poder, por meio de redes clientelistas.
A oposição a Bolsonaro permanece fragmentada. Isso joga a favor de líderes autoritários?
Em geral, uma oposição deve ser unida – essa continua sendo uma das lições importantes das transições para a democracia nas décadas de 1970 e 1980. Mas há também uma armadilha: uma situação de “todos contra um, um contra todos” pode parecer confirmar a retórica dos populistas de que o establishment está fechando fileiras contra os recém-chegados, a fim de preservar seus privilégios corruptos. Portanto, uma oposição inteligente se unirá quando se trata de defender o básico da democracia, mas saberá manter diferenças políticas normais e não se envergonhará de apontar contrastes entre si.
Quais serão os principais aspectos a serem observados no futuro para verificar a força das democracias liberais no mundo?
Acho que precisamos prestar mais atenção às instituições que, desde o século 19, foram consideradas cruciais para fazer funcionar a democracia representativa: partidos e imprensa livre. Precisamos ao mesmo tempo reinventar como essas instituições são financiadas e precisamos torná-las mais abertas, e não menos abertas, aos cidadãos. Não sou tão pessimista quanto alguns observadores que pensam que as redes sociais ou os partidos políticos baseados em plataformas da internet significam o fim da democracia. Acredito que precisamos pensar em novas regulamentações para os partidos e para a imprensa que estejam alinhadas com os padrões democráticos básicos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.