26/08/2020 - 10:27
Ingrid dos Santos não faz ideia de quem tem recebido seu salário pelo trabalho como técnica em enfermagem em um hospital de campanha destinado a pacientes com COVID-19 no Rio de Janeiro, mas sabe que não é ela.
Segundo Ingrid, 28 anos, desde maio não chegam os pagamentos por seu contrato no hospital improvisado mal construído e nunca aberto em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Mas o salário e a rescisão que ela deveria ter recebido, entre outros valores, aparecem em seu registro do INSS – um sinal claro no Brasil de que alguém está roubando dinheiro público e tentando encobrir o crime.
O caso dela é emblemático da enorme quantidade de fundos governamentais para o enfrentamento da pandemia que estão sendo roubados, segundo especialistas. No segundo país mais afetado pela COVID-19, a pressa para responder ao novo coronavírus é atropelada por uma doença endêmica mais antiga: a corrupção.
O Brasil possui um longo histórico de escândalos de fraudes. Porém, mesmo para os padrões brasileiros, o escopo das acusações é ultrajante.
Supostamente, o estado do Amazonas comprou ventiladores superfaturados de uma loja de vinhos. O governador do Rio de Janeiro enfrenta um processo de impeachment relacionado aos sete hospitais de campanha que o estado encomendou, cinco dos quais nunca abriram. Em Brasília, o secretário de Saúde foi preso na terça-feira por irregularidades na compra de testes de COVID-19.
No total, pelo menos 11 dos 27 estados têm casos de corrupção abertos. Até Neymar acabou envolvido. O nome e os dados pessoais do jogador de futebol foram usados para a solicitação do auxílio emergencial de 600 reais por mês que o governo federal está pagando aos brasileiros mais atingidos pelas medidas de confinamento.
Ingrid afirma que mais de mil de seus colegas de profissão estavam na mesma situação. “Onde foi parar o dinheiro? Ninguém sabe dizer, ninguém sabe explicar”, disse à AFP. “Só sabemos que, no fim dessa história toda, nós, que estávamos na linha de frente, somos esquecidos”, declarou a agora desempregada mãe de dois filhos. “Muitos passando necessidade, passando fome.”
– Muito dinheiro, pouca supervisão –
Especialistas dizem que a janela para a corrupção em grande escala se abriu enquanto o Brasil lutava, no início da pandemia, para conter os estragos causados pela COVID-19.
Enquanto autoridades se apressavam para comprar ventiladores, leitos de terapia intensiva, máscaras e álcool em gel, recursos repentinamente escassos, o Congresso aprovou uma lei, em abril, autorizando todos os níveis de governo a fazerem compras de emergência sem licitações, ou a burocracia habitual.
Muitos países atingidos fortemente pelo vírus tomaram medidas semelhantes. No Brasil, no entanto, os ataques do presidente Jair Bolsonaro contra o isolamento e a “histeria” causada pelo coronavírus deixaram estados e municípios praticamente sozinhos na luta, enquanto a COVID-19 crescia.
O país, de 212 milhões de habitantes, perde apenas para o Estados Unidos em infecções e mortes: mais de 3,6 milhões e 116 mil, respectivamente.
“O Brasil tem todos os estados e municípios mais a União concorrendo entre si para comprar os mesmos produtos, os mesmos remédios, contratar os mesmos serviços”, disse Guilherme France, coordenador de pesquisa da Transparência Internacional no Brasil.
“É muito mais fácil fiscalizar as contratações de um grande órgão público do que controlar as realizadas por mais de 5.000 entes. Essa falta de coordenação por parte do governo federal certamente aumentou os riscos de corrupção”, explica.
Dos 286,5 bilhões de reais em gastos emergenciais federais com a pandemia até agora, menos de 8% foram diretamente para o combate à doença, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU). Rastrear para onde está indo todo o dinheiro é um trabalho “intenso”, segundo o secretário-geral de controle externo do TCU, Paulo Wiechers.
“Qualquer situação de crise é sempre uma oportunidade para quem quer fazer mau uso do dinheiro público e se aproveitar da situação”, afirma ele.
Wiechers estimou que levaria seis meses após o fim da pandemia para rastrear para onde os fundos foram e determinar quanto foi gasto de maneira irregular. As estimativas preliminares já estão na casa dos bilhões. Encontrar e julgar quem roubou levaria ainda mais tempo.
– ‘Ladrões de gravata’ –
Para piorar a sujeira, há temores de que as alegações de corrupção sejam, às vezes, usadas como armas políticas, minando ainda mais a confiança da opinião pública no sistema, de acordo com especialistas.
“As denúncias de corrupção têm sido utilizadas de maneira direcionada pelo presidente Bolsonaro e seus apoiadores contra seus adversários, particularmente contra os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio, Wilson Witzel, que já se anunciaram como pretendentes à cadeira presidencial em 2022”, apontou o analista político Geraldo Monteiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Ingrid, por sua vez, está farta de tudo isso. Na carteira de trabalho, que não conseguiu alterar, ela ainda é funcionária no extinto hospital de campanha que a contratou. Isto a torna inelegível para atuar como técnica em enfermagem em outro lugar, sob as normas que impedem profissionais de enfermagem de trabalhar horas demais.
A profissão era seu sonho de infância, mas os “ladrões de gravata” a fazem querer desistir, disse.
“Para que eu quero sofrer mais? Não dá para a gente trabalhar hoje em dia, ser servidor público, porque o fim é esse… Eu vou trocar de área. Não sei, trabalhar em shopping, ou alguma coisa”, desabafou.