16/10/2020 - 10:58
A ideia de deixar o vírus da covid-19 circular livremente para alcançar a imunidade coletiva, em desequilíbrio no início da pandemia, emerge cada vez mais como uma miragem perigosa – alertam vários cientistas.
Trata-se de permitir que uma determinada proporção da população se infecte com o vírus, de modo que a pandemia cesse por conta própria, na ausência de novas pessoas para infectar.
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Mas, depois de meses de emergência na saúde, “estamos muito, muito longe” de atingir esse limite, afirma à AFP Frédéric Altare, especialista em imunidade do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica da França.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou claro esta semana: “Nunca, na história da saúde pública, a imunidade coletiva foi utilizada como estratégia para responder a uma epidemia, muito menos a uma pandemia. É problemático do ponto de vista científico e ético”, disse seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
“Deixar um vírus perigoso livre, do qual muitas coisas nos escapam, é simplesmente contrário à ética. Não é uma opção”, insistiu.
A OMS calcula que, na maioria dos países, 10% da população pode ter-se contagiado com o SARS-CoV-2.
– Declarações de Trump a favor –
Portanto, bilhões de pessoas ainda podem se infectar com esse vírus, mais letal e contagioso que a gripe e para o qual ainda não existe nenhuma vacina.
Em maio, a OMS alertou que os países favoráveis a perseguir a imunidade coletiva se envolveriam em “um cálculo muito perigoso”.
O presidente Donald Trump defendeu essa ideia com frequência.
Neste mês, um grupo de cientistas lançou o apelo “The Great Barrington Declaration”, a favor de deixar que o vírus circule entre os jovens com boa saúde – e, portanto, suscetíveis a não ficarem gravemente doentes -, para proteger os mais vulneráveis.
Um pedido apoiado pela Casa Branca, segundo a imprensa americana.
O principal benefício dessa estratégia seria evitar os danos econômicos, sociais e sanitários provocados pela pandemia, por não precisar decretar, por exemplo, novos confinamentos generalizados.
É “um erro”, responderam 80 cientistas na quinta-feira em uma carta aberta publicada na revista médica The Lancet.
“Uma transmissão incontrolável entre os mais jovens seria muito arriscado em termos de saúde e mortalidade para o conjunto da população”, afirmam, exemplificando com o risco de saturação dos sistemas de saúde.
– Limite mínimo –
A Suécia, que optou por não confinar sua população, nem fechar escolas, bares e restaurantes durante a primeira onda, registra uma mortalidade que a coloca entre os primeiros 15 países do mundo, em relação ao tamanho de sua população, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.
Além disso, não se sabe quanto tempo dura a imunidade e há casos, embora raros, de reinfecção.
“É possível que os anticorpos se reduzam com o tempo”, lembrou na semana passada uma responsável da OMS, Maria Van Kerkhove.
“As reinfecções mostram que não podemos nos basear na imunidade adquirida pela infecção natural para alcançar a imunidade de rebanho”, escreveu a doutora Akiko Iwasaki, especialista em imunidade da Universidade de Yale.
Alguns defensores da imunidade coletiva natural também argumentam que seu limite, estimado geralmente para um vírus entre 60% e 70% da população, seria na verdade menor, porque nem todo mundo contrai a covid-19.
Recentemente, foi descoberto que algumas pessoas já estão protegidas contra o SARS-CoV-2 quando se infectam, apesar de não terem estado em contato com ele anteriormente, segundo Frédéric Altare.
Em vez de anticorpos, essas pessoas desenvolvem uma imunidade celular, graças a um determinado tipo de glóbulos brancos. Ao “conhecer” outros agentes infecciosos semelhantes ao SARS-CoV-2, esses glóbulos identificam este último como um perigo e o atacam.
“Isso significa que os dados que afirmam que entre 5% e 10% da população já poderia estar imunizada estão certamente subestimados, mas não sabemos até que ponto”, continua Altare.
No entanto, mesmo levando-se em consideração todos os fatores relevantes, a porcentagem mínima necessária para alcançar a imunidade coletiva “seria de 50%” e, portanto, produziria um número considerável de mortes no caminho, acrescenta.
Sendo assim, a imunidade coletiva deve passar por “vacinas seguras e eficazes”, segundo a doutora Iwasaki.