08/11/2020 - 16:00
Nos estertores da ditadura, a cúpula militar levou ao general João Baptista Figueiredo uma proposta de suspender a transição democrática. A ideia sempre nutrida por golpistas da caserna se chocava com o compromisso que o último presidente do ciclo militar assumira. Em 15 de setembro de 1984, a quatro meses da eleição indireta que escolheria um presidente civil, Figueiredo, com socos na mesa, refutou em definitivo a sondagem e disse que o resultado do Colégio Eleitoral só seria desprezado sobre o seu cadáver.
A reunião histórica ocorrida na Granja do Torto, em Brasília, integra um arsenal de atitudes de Figueiredo para, à sua maneira, contribuir para o afastamento dos militares do centro decisório 21 anos depois do golpe militar. A liderança de Tancredo Neves, escolhido indiretamente para sucedê-lo, na transição marcou a história do País.
No entanto, as ações do general pela reconciliação nacional e reabertura trazem uma leitura sobre o período, a partir de seu ponto de vista e de um círculo muito próximo de aliados pouco abertos a entrevistas.
É o que se propõe Me Esqueçam: Figueiredo – A Biografia de uma Presidência, de Bernardo Braga Pasqualette, recém lançado pela Editora Record. Detalhes sobre o papel do general chegam às livrarias no momento em que ocorrem pleitos por uma “intervenção militar”.
Fruto de extensa pesquisa e de entrevistas com uma centena de civis e militares do entorno do ex-presidente, o livro explora investidas de Figueiredo para a reconstrução democrática, sem o interesse de suavizar a imagem do ditador.
O trabalho traz pormenores da reunião de 1984, que encerrou tratativas sobre uma eventual “virada de mesa” que poderia mudar a história do Brasil, e põe em debate o papel de um personagem desprezado por historiadores.
Em depoimento ao autor, o ex-ministro da Marinha Alfredo Karam confirmou a apresentação da proposta a Figueiredo de melar a transição no encontro a portas fechadas com outros cinco ministros do governo. Karam retirou com veemência o crédito pela ideia dos ombros do ministro do Exército, general Walter Pires, apontado como o responsável em reportagens que citaram o episódio, sem dar detalhes. O ex-ministro, porém, preservou o nome de quem fez a proposta.
Também participaram dessa reunião Otávio Medeiros (SNI), Délio Jardim de Matos (Aeronáutica), Rubem Ludwig (Casa Militar) e Waldir de Vasconcelos (Chefe do Estado Maior das Forças Armadas).
Temperamental e com parca habilidade política, Figueiredo foi escolhido por Ernesto Geisel como sucessor, apesar das resistências nas tropas. O pai do general, Euclides Figueiredo, um dos líderes do movimento paulista de 1932, marcou época pela defesa democrática na ditadura de Getúlio Vargas.
Figueiredo era homem da “cozinha” do Planalto. Ele era da chefia do Serviço Nacional de Informações (SNI) e, entre os pares, era visto mais como um burocrata do que como alguém que acumulava postos de comando. Era um general de três estrelas. Uma manobra na fila do Exército tomou curso para que ele pudesse ostentar a quarta e assumir a linha de comando sem constranger o generalato superior forçando-os a “bater continência para baixo”.
Entrega da faixa
Figueiredo tratou, ele mesmo, de ofuscar o que poderia ser a foto mais representativa de seus seis anos de governo. Por desavenças que considerava insuperáveis, tomou a decisão de deixar o Palácio do Planalto à francesa e de não fazer a simbólica passagem da faixa presidencial a José Sarney, civil que assumiria com a morte de Tancredo.
“Nem Figueiredo, nem o doutor Leitão de Abreu (chefe do Gabinete Civil), nem eu tivemos o pensamento correto, de que seria um gesto muito importante passar a faixa (para o Sarney). Foi uma noite muito complicada, ninguém dormiu”, contou ao Estadão o diplomata Synesio Sampaio, 81 anos. Chefe do cerimonial de Figueiredo, ele acompanhou o general por uma saída lateral do Planalto, em 15 de março de 1985.
O ex-presidente foi além na discrição. Na mensagem final endereçada aos brasileiros, pediu para que o esquecessem. Deixou no ar se despia-se da vaidade ou se sabia que os minguados resultados econômicos que tinha a oferecer ao cabo de duas décadas de regime militar não poderiam concorrer com o entusiasmo que o resultado do Colégio Eleitoral então despertava na população brasileira.
“É injusto legar à história esse esquecimento. Aquele breve período, entre março de 1979 e março de 1985, foi bastante significativo para a vida nacional”, salienta o autor do livro.
Sem investidas para fixar um legado, Figueiredo abriu mão do melhor ponto final que poderia dar à sua passagem pelo governo. Ele incorporou à imagem a omissão diante do atentado do Riocentro, as declarações atabalhoadas e desrespeitosas, a opção pelo “cheiro dos cavalos ao do povo”, a ordem para derrubar a antiga sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio, a briga generalizada que provocou ao partir para cima de manifestantes que o criticavam na “novembrada” de Florianópolis.
Aceno
Por outro lado, o livro chama a atenção para ações que expõem outra faceta do ex-presidente. Com as vitórias da oposição na eleição de 1982, Figueiredo optou pela convivência harmônica. Em aceno ao futuro e à reconciliação, convidou ao Palácio três grandes representantes das vítimas de 1964. Ele recebeu para encontros, com forte carga simbólica, o ex-presidente Jânio Quadros e as ex-primeiras-damas Sarah Kubitschek e Maria Thereza Goulart.
Mesmo a assinatura da Lei da Anistia, em 1979, Figueiredo levou para a eternidade como uma marca acessória. Foi essa constatação que atraiu o interesse de Pasqualette quando, ainda aos 16 anos, leu um artigo publicado pelo jornalista Elio Gaspari no jornal O Globo, em agosto de 1999.
No texto, Gaspari relatava a ausência de homenagens ao general em decorrência dos 20 anos da lei e lembrava que, apesar de todas as críticas sofridas pela gestão fraca e errática, foi ele quem deu o autógrafo nesse importante dispositivo. “Foi o seu melhor momento. Esquecê-lo seria injustiça, covardia e ignorância”, escreveu Gaspari, há 21 anos. Autor de uma série de livros sobre a ditadura militar, Gaspari revisou a obra de Pasqualette.
O novo livro conta também a história do João, personagem mais humano e simpático que a máquina do marketing do Planalto tentou construir, aberto à imprensa, antes que a crise econômica batesse à porta da ditadura. A narrativa de Me Esqueçam: Figueiredo dá complexidade a um homem que passou para a história como um cavaleiro bruto.
Sua personalidade e as características de seu governo variam de um extremo a outro, do autoritário ao detentor de espírito democrata. É um dos perfis que faltavam à bibliografia do período. “Sua biografia convive permanentemente com essa dualidade”, destaca o autor.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.