31/03/2004 - 7:00
OS ALIADOS Neeleman (acima) tem como sócios o investidor George Soros e o banco Chase
Não tinha jeito. Ele jurava que era brasileiro, mas a meninada de Campina Grande, na Paraíba, insistia em chamá-lo de gringo. Também pudera: aquele missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias tinha um nome complicado ? David Neeleman ? quase dois metros de altura, pele clara, olhos azuis e falava com um sotaque tão carregado que ficava difícil acreditar na sua brasilidade. Neeleman estava com 19 anos e vinha de uma longa temporada nos EUA ? era a primeira vez que voltava ao País desde que deixou São Paulo, sua cidade natal,aos sete anos de idade. A missão no Nordeste era difundir os ensinamentos mormons e ajudar na educação das crianças carentes. Ele cumpriu o ofício e retornou aos Estados Unidos. Hoje, aos 43 anos, o gringo de Campina Grande virou estrela internacional, ?doutrinando? o mundo dos negócios. A seu modo, o brasileiro transformou a Jet Blue na sensação da aviação americana. A taxa de ocupação das aeronaves chega a 85%, um dos maiores índices do mundo. Os custos da empresa são em média 40% menores do que o das rivais, o que lhe dá a condição de praticar as mais baixas tarifas do mercado. Em 2003, a Jet Blue foi a companhia aérea que mais cresceu nos EUA: o lucro bateu em US$ 103 milhões e as vendas chegaram a US$ 998 milhões (57% maior que no ano ante-
rior). ?Fechamos o ano com US$ 600 milhões em caixa para investir?, disse Neeleman em entrevista a DINHEIRO. Num setor que perdeu
mais de US$ 15 bilhões desde 2001, a novata Jet Blue, com apenas quatro anos de existência, surpreende até os mais pessimistas. E prova que a filosofia de Neeleman, baseada no conceito custo
baixo-tarifa baixa, está funcionando.
No início deste mês, Neeleman esteve novamente no Brasil. Visitou a Embraer, os amigos da Igreja Mormom e a Varig. A Embraer é sua parceira. Vendeu para a Jet Blue 100 aviões modelo 190, com opção de mais 100, num contrato que pode chegar aos US$ 6 bilhões. A Igreja, ele sempre visita quando está no País. Mas e a Varig? ?Fui conhecer o presidente Luiz Martins?, afirma Neeleman. ?Andaram dizendo que eu estava interessado em uma parceria com a Varig, mas a Jet Blue não tem planos fora dos EUA?. Pode não ter planos específicos para o Brasil. Mas a menos que Neeleman considere o Caribe como território americano, a Jet Blue tem sim interesses fora da terra de Bush. Na semana passada, pediu autorização ao governo da República Dominicana para voar até Santo Domingo. Isso sem contar o já manifestada intenção em montar um consórcio com a colombiana Alianza Summa para explorar a América do Sul. ?Mas no Brasil acho difícil o desembarque da Jet Blue, principalmente em associação com a Varig. São bichos diferentes?, diz um empresário do setor. Procurado, o presidente da Varig informou, por meio de seus assessores, que o presidente da Jet Blue fez uma visita de cortesia e o convidou inclusive a conhecer as operações da companhia nos EUA. ?Para se associar com a Varig ele poderia ter no máximo 20% do controle. Neeleman não tem o mínimo perfil de sócio contribuinte?, avalia o consultor José Carlos Martinelli, da Eurolatin.
O presidente da Jet Blue é apaixonado pelo Brasil. Ao menor pretexto, arruma as malas e desembarca em São Paulo. Em New Cannan (Connecticut), onde mora, já ficaram famosos os churrascos para os compatriotas. Também fez questão de que sua mulher, Vicky, e os nove filhos tivessem cidadania brasileira. A ligação afetiva dos Neeleman com o Brasil teve início em meados dos anos 50. Gary, pai de David, havia sido transferido pela UPI Services (energia) para montar o escritório da empresa em São Paulo. Gostou tanto do País que o adotou como sua segunda pátria. Em outubro de 1959, nasceu David. Foi Gary, aliás, quem encaminhou o menino para a religião Mormom. Em 66, a família foi transferida de volta aos EUA. E uma década depois, David desembarcou no Nordeste para cumprir sua obrigação missionária. ?Com o Brasil o meu envolvimento é emocional?, revela Neeleman. ?Tanto que investi US$ 1 milhão para o fundo perpétuo de educação?. É um programa da Igreja Mormom que oferece bolsas de estudos, dando oportunidade para que jovens brasileiros freqüentem universidades. O fundo existe desde 2001
e já atendeu 7,5 mil estudantes. ?O Brasil precisa investir em educação?, pede o empresário.
EXPANSÃO Acordo com Embraer para aumentar a frota pode chegar a US$ 6 bi
David Neeleman não terminou a faculdade. O problema de déficit de atenção, diagnosticado ainda na adolescência, o impedia de realizar qualquer tarefa que necessitasse de concentração. Por isso mesmo, poucas vezes se aventurou como empregado de alguma companhia. Tinha receio de decepcionar o patrão. ?Já que havia esse problema a saída era ser criativo e montar o próprio negócio?, conta. Com a ajuda da família, ele criou uma pequena agência de viagens. Vendeu a companhia e partiu para uma empresa de vôos charter, a Morris Air. Em 1993, a Southwest Airlines se interessou pela Morris. E Neeleman nem pensou duas vezes: embolsou US$ 130 milhões com a venda. Chegou a assumir um cargo na Southwest, mas acabou demitido.
Com o tempo livre, se dedicou a outro projeto: o desenvolvimento de um sistema de venda de bilhetes pela Internet. O Open Skies foi um sucesso e, em 1999, Neeleman o repassou para a HP, por
US$ 150 milhões. Foi então que começou a desenhar a Jet Blue.
E conquistou aliados de peso para o projeto: o investidor George Soros e o banco Chase.
Soros e o Chase só toparam se juntar a Neeleman se ele realmente trouxesse algo novo ao mercado. O brasileiro caprichou, baseado no tripé estrutura enxuta?tecnologia?preço baixo. Para começar, seu salário como CEO (não estamos falando dos ganhos como acionista) é modesto para os padrões americanos: US$ 200 mil ao ano. Ele trabalha também num escritório espartano, no oitavo andar de um prédio localizado em Forrest Hills, subúrbio de Nova York. Hoje, o número de funcionários por avião na Jet Blue é um dos mais baixos do setor: 106. E a empresa escolheu operar com Airbus, em vez do americano Boeing, porque, segundo Neeleman, os aviões europeus tem menor custo de manutenção e mais economia de combustível. Decisão ousada. Num país que defende suas empresas com unhas e dentes, ver uma companhia aérea local comprar aviões de fora é quase um acinte.
A Jet Blue foi pioneira em tudo aquilo que caracteriza as companhias aéreas de seu segmento. Não serve nada perecível a bordo ? o que diminui o tempo de permanência no solo para repor a comida e dispensa o uso de pesados equipamentos de conservação. Com isso, ela chega a eliminar 500 quilos da aeronave. Esse é outro fator de economia. A companhia também adotou a manutenção faseada dos aviões. É aquela feita diariamente, antes do primeiro vôo. O processo evita a paralisação dos jatos durante cinco dias, como é de praxe na manutenção tradicional. Além disso, compras de passagem podem ser feitas pela internet. A Jet Blue enterrou os bilhetes aéreos. Qualquer semelhança com a Gol não é mera coincidência. Constantino Júnior, comandante da companhia brasileira, visitou várias vezes Neeleman para pegar dicas preciosas. A única ?frescura? que a Jet Blue tem a bordo é a televisão ao vivo em cada assento de suas aeronaves, oferecendo a programação DirecTV. Em breve, terá 100 canais de rádio via satélite e sistema pay-per-view para filmes.
Ate 2011, o empresário promete quintuplicar sua frota: quer chegar a 290 aviões. A expansão seria feita principalmente com aviões de 100 lugares da Embraer, que serão entregues a partir de 2005. Ao todo, Neeleman pretende investir US$ 7 bilhões em oito anos. Analistas da aviação civil, no entanto, acham arriscada tal expansão da Jet Blue. Receiam que ao se tornar grande demais a companhia perca sua principal arma: a austeridade. Além do mais, a ascensão da Jet Blue começa a despertar a fúria das rivais. A Southwest, principal concorrente, já anunciou TV a bordo. American Airlines e Continental estão se recuperando financeiramente. E Delta e United já estão prontas para decolar suas empresas de baixo custo, Song e Ted, respectivamente. A favor da concorrência contam ligeiras quedas nos indicadores da Jet Blue no quarto trimestre de 2003. A margem de lucro da companhia caiu 3%. E uma avaliação do JP Morgam estima que os lucros em 2004 devem apresentar redução de 7%, embora as receitas cresçam 30%. Neeleman encara a ofensiva da concorrência com uma paciência de mormom. ?É natural e esperado que eles venham para cima. Sinal de que a Jet Blue virou referência?.
TUDO AZUL
A Jet Blue em números
Ano de fundação
2000
Passageiros transportados até hoje
14 milhões
Destinos
23 cidades
Faturamento
US$ 998 milhões
Frota
53 Airbus 320
(outros 100 Embraer 190
chegam a partir de 2005)
?SOMOS OS MELHORES?
PLANO DE VÔO: “Oferecemos o que o cliente quer: preço, segurança e eficiência”
Na Terça-feira 23, o empresário David Neeleman concedeu a seguinte entrevista a DINHEIRO:
O que faz a Jet Blue diferente?
Elaboramos um plano que inclui muita tecnologia, mão-de-obra motivada e bem paga, aviões novos e custos baixos. Oferecemos o que o passageiro quer: eficiência, preço e segurança. Hoje, temos o melhor serviço e os melhores profissionais.
O senhor tem planos de montar uma companhia de baixo custo no Brasil?
O que aconteceu é que visitei Luiz Martins (presidente da Varig) e isso levantou especulações sobre um acordo entre a Jet Blue e a Varig. Foi apenas uma visita de cortesia.
Como é a relação da Jet Blue com a Embraer?
A melhor possível. Comprei 100 aviões, com opção de mais 100. Começo a receber as aeronaves a partir de 2005. A Embraer será importante parceira em nossa expansão.
O que o senhor acha do Governo Lula?
Estive com ele na apresentação do Embraer 190. Disse ao presidente que já investi US$ 1 milhão em educação no Brasil e que, como brasileiro, também esperava isso dele. Saí com uma ótima impressão. Acho que seus programas sociais podem dar muito certo.