Os últimos anos se revelaram muito desafiadores para a General Motors no Brasil. Em 2017, a empresa teve de assimilar a nota zero endereçada à primeira geração do Chevrolet Onix em crash test lateral realizado pela Latin NCAP, programa de avaliação de segurança automotiva em carros novos para América Latina e o Caribe. Um pesadelo envolvendo o então líder em vendas do País, posição que ocupava desde 2015. O modelo acabou submetido a adaptações e, no ano seguinte, recebeu três de cinco estrelas possíveis em nova análise da entidade uruguaia. A trajetória de ‘rei’ seguiu recheada de sucesso até fevereiro deste ano, quando, diante dos impactos provocados pela pandemia nas cadeias globais de produção, perdeu a coroa e segue em decadência. Um duro golpe para a bandeira na briga pela manutenção da liderança do mercado nacional. O Onix foi o responsável por 40% – ou 135 mil – dos 338 mil veículos comercializados pela montadora em 2020. Para piorar, a empresa suspendeu as atividades em algumas unidades no País diante da falta de componentes e da necessidade de adequação das linhas à produção de novos modelos. Tempos sombrios.

A decisão da GM está diretamente relacionada ao desabastecimento mundial do mercado de semicondutores, utilizados nos chips eletrônicos. A escassez do componente é provocada, entre outras coisas, pela guerra comercial entre China e Estados Unidos; incêndio em fábrica de semicondutores no Japão; e seca em Taiwan, o que prejudica a fabricação, que utiliza muita água no processo. Para complicar, no caso do Onix e de outros hatches médios modernos, são necessários ao menos 1,1 mil semicondutores, utilizados, por exemplo, em itens de segurança, motor e conectividade. “Não vamos deixar de oferecer aquilo que nossos clientes mais valorizam em um automóvel nem focar em versões básicas em razão da escassez momentânea de suprimentos, mesmo que isso impacte temporariamente nossa produção”, disse Carlos Zarlenga, presidente da GM América do Sul, em comunicado.

Em Gravataí (RS), no entanto, informações nos bastidores apontam a possibilidade de a suspensão da produção do Onix ter sido definida pela GM para privilegiar a fabricação da Tracker. Os semicondutores disponíveis na planta gaúcha teriam sido direcionados a São Caetano do Sul, onde funciona a linha do SUV. O motivo seria financeiro. Enquanto o preço de entrada do hatch é de R$ 63 mil, o do SUV parte de R$ 96 mil. As estatísticas mostram também que, se a tendência se confirmar, o potencial de vendas do hatch é muito menor. De janeiro a maio de 2020, período pré e de início da pandemia, a montadora comercializou 54 mil unidades do Onix e 7 mil da Tracker. Já no mesmo período deste ano saíram dos pátios 38,9 mil exemplares do hatch – queda de 28% em relação ao ano passado – e 26,1 mil do SUV, um aumento de 350%.

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“Não vamos focar em versões básicas em razão da escassez momentânea de suprimentos, mesmo que isso impacte a nossa produção” Carlos Zarlenga, presidente da GM América do Sul.

A interrupção da fabricação da nova geração do Onix e do Onix Plus tem custado caro à companhia, que, em maio, dois meses após a decisão, viu o modelo despencar para o 11º lugar entre os mais negociados, com apenas 3,8 mil unidades – o líder foi o Fiat Argo, com 10,9 mil. Para efeito de comparação, na somatória de janeiro e fevereiro, a GM havia comercializado 20 mil Onix. O posto principal já havia sido perdido em março, quando vendeu 7,9 mil exemplares, atrás do Hyundai HB20, com 8,0 mil, segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave). No ranking anual, incluindo automóveis e comerciais leves, o Onix segue na segunda colocação (38,9 mil unidades), atrás apenas da Fiat Strada (51,3 mil), mas já acompanhado de perto pelo Hyundai HB20, com 37,8 mil.

Apesar de reconhecer a importância do Onix nos negócios da GM, o economista Gustavo Braga, líder de operações na Carupi, empresa de tecnologia voltada à comercialização de carros seminovos, acredita que o prejuízo maior está na imagem da empresa, como líder de mercado. “O fato de produzir o carro número 1 do País fortalece a imagem da marca, como aconteceu, por exemplo, com a Volkswagen, líder com o Gol (Volkswagen) durante um longo período. Essa posição favorece o restante do portfólio de produtos de uma marca”, disse. Agora, a GM perde a vantagem.

O especialista, no entanto, aposta no retorno do Onix. Para Braga, quanto mais unidades do modelo no mercado, mais fácil o acesso a peças de reposição e maior a valorização. Isso sem contar que a “imagem de confiável” passa de geração para geração. “E com a disseminação dos modelos anteriores, vai ser um processo natural para proprietários ou ex fazerem upgrade para modelos mais novos do mesmo veículo. O Onix deve retomar à liderança assim que a produção for 100% retomada.”

A fabricação do Onix está prevista para recomeçar apenas em 16 de agosto. Enquanto os consumidores esperam a oportunidade de adquirir o modelo, a empresa tomou medidas semelhantes nas demais plantas do País. Também afetada pela falta de componentes, a fábrica em São José dos Campos chegou a ter o ritmo de fabricação reduzido. Saem da planta a S10 e a Trailblazer. Ainda assim, após acordo o Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP), a GM contratou 400 funcionários neste ano e outros 200 devem se juntar aos 3,8 mil colaboradores no Vale do Paraíba. As admissões fazem parte do plano de investimento de R$ 5 bilhões na unidade.

As intervenções da GM impactaram negativamente também a mais icônica fábrica da bandeira no País, localizada em São Caetano do Sul (SP). Na segunda-feira (21), a montadora iniciou a paralisação das atividades, por quase dois meses, para adequação das linhas de montagem para a produção de uma nova picape, substituta da Montana e que será exportada para mercados na região. Mas, a decisão da montadora teria sido ambém motivada falta de componentes. Na unidade, onde trabalham cerca de 8 mil funcionários, são fabricados os modelos Tracker, Onix Joy, Onix Plus Joy e Spin.

As paralisações recentes nas fábricas, além da suspensão da produção do Onix, tiveram influência direta na participação de mercado da marca entre os automóveis no primeiro semestre. Em abril, a GM ocupava a vice-liderança entre os automóveis, com 14,4%, atrás apenas da Volkswagen – 19,2%. Já em maio a empresa despencou para o quarto lugar (10,3%). Em junho e julho, a tendência é que a queda se acentue diante das novas medidas adotadas pela multinacional.

TENSÃO Sem ignorar o presente, mas de olho no futuro, a GM global anunciou a ampliação no investimento em carros elétricos e autônomos, para US$ 35 bilhões, até 2025, o que representa um incremento de 75% em relação ao compromisso inicial anunciado antes da pandemia, de US$ 20 bilhões. Com isso, a montadora acelera a estratégia de transformação para se tornar a maior do mercado em elétricos na América do Norte, além de líder mundial de bateria, por meio de sua plataforma Ultium, e célula de combustível Hydrotec. A bandeira também mira, por intermédio da Cruiser, ser a primeira a comercializar com segurança a tecnologia de direção autônoma em larga escala. “A GM tem como meta global a venda de mais de
1 milhão de veículos elétricos anualmente até 2025”, disse Mary Barra, CEO mundial.

De olho nas metas estabelecidas pela matriz norte-americana, mas excluída dos planos da produção dos modelos elétricos do futuro, a GM Brasil iniciou este mês a ampliação da quantidade de concessionárias Chevrolet habilitadas a oferecer o Bolt EV, o primeiro carro 100% elétrico da GM, de 26 para 79. “O aumento do número de concessionárias é um elemento importante dentro da nossa estratégia de liderar a eletrificação na região”, afirmou Zarlenga, presidente para América do Sul.

O Bolt EV começou a ser comercializado em 2019. Desde então, 130 unidades foram comercializadas. O preço atual, com a variação cambial do dólar, é de R$ 274 mil. Resta saber como os contratempos na operação nacional podem afetar a posição da marca no Brasil. A resposta, no entanto, ainda não tem data para acontecer.

CHINESA GREAT WALL A CAMINHO DO BRASIL

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O mercado brasileiro de automóveis pode ter em breve uma quarta bandeira de origem chinesa. Depois de Chery, Jac e Lifan, a Great Wall Motor estuda a possibilidade de ampliar a presença na América do Sul com uma fábrica no Brasil. Maior fabricante de SUVs e picapes do país asiático, a GWM já atende a região por meio de importadores, principalmente no Chile, sexto maior mercado mundial da marca, com 2,4 mil emplacamentos em 2020. O grupo é detentor de cinco marcas: Haval e Tank (dedicadas aos SUVs), Great Wall (picapes), Wey (SUVs de luxo) e ORA (carros elétricos).

De olho no mercado brasileiro há pelo menos dez anos, a companhia estaria em negociações para comprar a fábrica da Mercedes-Benz, em Iracemápolis, São Paulo. A unidade de carros de bandeira alemã está à venda após o encerramento da produção no País, no ano passado. A planta tem capacidade para produzir 20 mil carros por ano, além de possuir um campo de provas. Em nota, a Mercedes afirmou que não comenta especulações.

Em entrevista recente, o executivo Anderson Suzuki, ex-Toyota e atual diretor de planejamento de produto para a América Central e do Sul da GWM, não confirmou as negociações com a diretoria da Mercedes e afirmou que, além da instalação de uma fábrica, a importação também é uma das opções estudadas pela companhia para iniciar as operações no Brasil. A Argentina também integra o plano de internacionalização da marca.

No ano passado, a GWM comprou fábricas da General Motors na Índia e na Tailândia, onde iniciou em fevereiro a venda do SUV Haval H6 e do compacto elétrico ORA Good Cat. A montadora chegou a ter uma experiência no Brasil, em 2009. A Alexandros Motors importou alguns modelos, como o SUV médio Hover. O negócio, no entanto, não prosperou. Situação parecida ocorreu em 2013, quando executivos da empresa visitaram algumas regiões do Brasil, como Ribeirão Preto e Salvador, e chegaram a anunciar uma fábrica no Brasil, mas os planos não se concretizaram.

Desta vez, a companhia pretende estrear com dois modelos: a picape média Série P e o SUV Haval H6, com porte de Volkswagen Tiguan Allspace, já registrado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). O mercado brasileiro, na opinião da GWM, é um dos mais importantes, por ocupar entre a sexta e a oitava colocação no mundo em produção e vendas.

O especialista Gustavo Braga, líder de operações da Carupi, aprova a entrada de mais uma montadora chinesa no mercado brasileiro. Segundo ele, as marcas driblaram a desconfiança do consumidor e se tornaram relevantes por, além de passarem a imagem de segurança, oferecer rede de apoio no pós-venda – em caso da necessidade de manutenção, por exemplo – e preço atrativo. “A consequência é que as pessoas começaram a ver que as marcas chinesas não são tão diferentes de algumas outras. O suporte do grupo Caoa na Chery, por exemplo, também significa que agora esses carros estão em um ponto de confiabilidade, que estão nos padrões de serviço da marca”, disse. A dúvida, mais uma vez, é se os projetos da empresa para o País finalmente irão acelerar ou se, novamente, não passa de boa intenção. A conferir.