17/09/2021 - 15:50
Agricultores caminham com lama até os joelhos, tentando salvar alguma coisa de seus cultivos de bananas-da-terra, enquanto as crianças brincam na água marrom e contaminada: o povoado de La Fortuna está inundado há duas semanas após as chuvas torrenciais que castigaram a Venezuela.
Este pequeno assentamento agrícola, localizado em uma vasta região de terras férteis do estado de Zulia (oeste), foi devastado pela fúria do rio Chama, que nasce nos Andes venezuelanos, em meio a uma temporada de chuvas incomum que afetou cerca de 54.000 pessoas em todo o país.
Mervin Urdaneta, de 55 anos, mostra as lesões nos pés, inflamados e cheios de fungos por tantos dias na água. Sentado na calçada, em frente à sua casa, pensa em como fazer a colheita.
“Não consigo tirar as bananas porque não suporto a dor nos pés e minha mulher está pior, não consegue nem caminhar”, conta, aflito, à AFP.
As inundações se repetem após anos de intervenções na vazão dos rios, cultivando nas margens de proteção, abrindo canais para a irrigação. A imagem de povoados cobertos d’água tem sido recorrente na última década.
Há apenas seis meses La Fortuna ficou inundado; há quatro anos, também; e mais uma vez agora está alagada há duas semanas, após chuvas 65% mais intensas do que em períodos anteriores, segundo as autoridades.
No estado vizinho de Mérida, pelo menos 20 pessoas morreram em outra região agrícola devastada por um deslizamento.
Refugiada na igreja, Yorlenis Cadena fica arrepiada só de pensar em um eventual desaparecimento de La Fortuna, como aconteceu há 70 anos com um povoado vizinho chamado Garcita, que foi soterrado pela lama.
“A pergunta que todos nos fazemos é para onde ir”, diz esta mãe de 31 anos.
– “Esquecidos” –
A águas contaminadas dos banheiros se misturam com as do rio. E o som provocado pelo impacto da corrente com as casas assusta os moradores, que tentam retirar a água com bombas e vassouras, sob o olhar de cães famintos que caminham desorientados entre a poças.
Um homem varre sem parar a lagoa que se formou em sua casa, mas é inútil. Sua mãe, sobrevivente da covid-19, o observa, sentada com os pés recolhidos para não encostarem na água.
Em casas como a de Nila Sánchez, os pertences foram colocados sobre mesas e caixas de plástico.
“Sempre fomos esquecidos, desta vez só vieram trazer sacolas de comida porque estão em campanha”, comenta.
Em uma casa onde as águas do rio passam da altura dos sanitários, duas crianças assistem à televisão em cima de suas camas. Seus pais são conscientes dos riscos da eletricidade, mas dizem que é a única forma de entretê-los.
Com botas de borracha, Gira Hernández, de 68 anos, caminha em meio à água, inquieta por seus cães e animais de criação. “Pus as galinhas em árvores, não podemos descê-las, não comem, vão morrer de fome, é um desastre”.
A única escola de La Fortuna também está inundada, e por isso Alice Vera, professora de 34 anos, teme que as aulas, suspensas desde março de 2020 por causa da pandemia, não poderão ser retomadas este ano, como o governo tinha anunciado.
Com as inundações, “a situação fica mais complicada”, destaca, preocupada com o destino de 110 estudantes.
– “Sacrifício” –
É urgente dragar o rio Chama e recolocar os muros de contenção erodidos, pede Luis Martínez, produtor de 56 anos que, após ouvir a notícia em Mérida, teme que La Fortuna tenha o mesmo destino. Alguns destes trabalhos começaram esta semana.
Com as colheiras arruinadas e a única ponte que os conecta destruída há anos por causa de outras chuvas, os produtores liquidam seus produtos. Trezentos quilos de banana, cotados a 108 dólares, média, baixaram para 55 dólares.
A carga é levada em lanchas até o outro lado do rio para ser carregada em caminhões. Mervin tem pressa de vender.
Como se não fosse o bastante, Mervin, que há três dias dorme em uma rede elevada sobre a água, como tantos outros, tem uma preocupação maior: seu filho Manuel, de 12 anos, foi diagnosticado com um tumor cerebral.
Sua voz embarga quando conta que o menino já perdeu a visão e a mobilidade. E “pedindo aqui e lá”, com a ajuda de familiares e vizinhos, foi comprando os insumos necessários para a cirurgia, que guarda na parte mais elevada de seu quarto, como um tesouro.
“O senhor não sabe o sacrifício que vivo com meu filho”, diz, mostrando uma válvula cara que precisa ser implantada no menino. “Já tenho tudo para levá-lo ao hospital, agora o que falta é o dinheiro para as passagens”.