06/02/2022 - 8:30
O assassinato bárbaro do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe é mais um capítulo da violência que muitos refugiados sofrem cotidianamente no Brasil. O País tem histórico de receber estrangeiros, mas eles também sofrem com violência e racismo. Além de serem alvo de preconceito, conterrâneos de Moïse em São Paulo relatam as dificuldades para conseguir moradia e trabalho.
Ontem, milhares de manifestantes protestaram em ao menos cinco cidades por causa do espancamento de Moïse: São Paulo, Rio, Brasília, Porto Alegre e Salvador. A mãe da vítima, a congolesa Ivana Lay, participou do ato pediu “justiça até o final” pelo filho.
Há 14 anos no Brasil como refugiada, Prudence Kalambay conta ter sofrido muito preconceito. “Um chefe meu pedia para eu dançar no trabalho. As pessoas imitam nosso sotaque ou perguntam se dormíamos com leões”, lembra.
“Muitas pessoas estão querendo ir embora por causa desse crime (caso Moïse). Somos vistos como bichos, infelizmente. Que culpa eu tenho de ser mulher africana, ou ter nascido na República Democrática do Congo? Não tenho vergonha disso, tenho orgulho do meu tom de pele. Mas por que nos matar? Qual a diferença de uma pessoa branca ou preta?”
Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), desde 2016 foram relatados 858 refugiados do Congo no Brasil, a maioria para São Paulo e Rio. Como os dados oficiais foram tabulados só a partir de 2016, é estimado que haja ao menos o dobro de refugiados congoleses aqui. Venezuelanos são maioria entre os refugiados no período (57.025). Depois vêm Senegal (3.487), Haiti (2.848), Síria (2.364), Angola (1.336) e Cuba (1.293).
FUGA. No Rio, os congoleses se concentram em Brás de Pina, zona norte, mas na capital paulista estão mais dispersos, sobretudo na zona leste e na região central, em bairros variados. Vieram fugindo da guerra em um país com enorme riqueza mineral, mas péssima distribuição de renda e um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo.
“Escolhi o Brasil por causa das novelas da Globo. Não estava programado para mim. Mas me apaixonei por isso e decidi vir para cá. A maioria que vem é intelectual, com diploma de professor, fala outros idiomas… Mas só consegue trabalho como ajudante, pois não valorizam nossa formação. Ser artista, então, é mais complicado ainda. Quem tem tom de pele mais claro tem mais chance que a gente”, lamenta Prudence, que pede ao governo brasileiro permissão para trazer a mãe do Congo e ainda não foi atendida. “Ela está doente, queria poder ajudar.”
Claudine Shindany tem formação em Comunicação, trabalhou para a Unicef – braço da ONU para a infância – e veio porque era perseguida no Congo. “A gente trabalha para sobreviver. Existe a barreira da língua: quando chega isso já é um problema. Só algumas pessoas que estudaram aqui conseguem ter um cargo melhor. A primeira coisa que vão oferecer é no setor de limpeza. Conheço jornalistas que trabalhavam aqui fazendo faxina.”
Ela relata uma série de episódios tristes que já viu ou sentiu na pele. “Nunca fui discriminada em outros lugares, mas aqui sofri preconceito. Na época eu nem sabia que isso existia”, conta. “Me coloco no lugar dessa mãe que perdeu o filho. Ela escapou das bombas e do estupro, mas chega em um país para reconstruir sua vida e encontra essa morte cruel do filho. O país que acolhe tem a responsabilidade de dar segurança e oferecer uma vida digna”, afirma.
Segundo Prudence e Claudine, ter carteira de trabalho assinada é raro, até para quem tem ensino superior. Moïse trabalhava informalmente como atendente no quiosque Tropicália, onde ocorreu o crime. Ontem, a prefeitura do Rio ofereceu a gestão do espaço à família do jovem. Outra proposta é criar um memorial à cultura congolesa na área.
No Brasil, para eles a moradia também é um problema. Mesmo com dinheiro para o aluguel, os proprietários muitas vezes demonstram preconceito e não querem fazer negócio. A saída para alguns é se manter com auxílios do governo, que são baixos. “É tão complicada a questão da moradia que a maioria acaba indo para pensões, ocupações ou favelas”, afirma Claudine.
TRADIÇÃO. Segundo Luiz Fernando Godinho, porta-voz oficial da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), os refugiados congoleses têm características étnicas e forte ligação religiosa. “Procuram manter tradições, fazem casamentos típicos e têm vínculo forte com a igreja, mas também apresentam diversidade”, diz. Ele lamenta o crime, mas defende evitar generalizações. “O Brasil tem histórico de proteção e acolhimento que não condiz com esse fato.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.