28/03/2022 - 15:38
Regra sancionada por governador republicano permitirá que pais processem escolas e professores no estado da Flórida que abordarem orientação sexual e identidade de gênero em sala de aula.O governador do estado americano da Flórida, Ron DeSantis, sancionou nesta segunda-feira (28/03) um projeto de lei que proíbe o ensino sobre orientação sexual e identidade de gênero nas escolas, em turmas para crianças de 5 a 9 anos de idade, e que também abre a possibilidade de que esses temas sejam também banidos em aulas voltadas para crianças mais velhas e adolescentes.
Os defensores do projeto, republicanos do mesmo partido de DeSantis, alegam que desta forma os menores serão protegidos de assuntos com os quais ainda não podem lidar e que a lei fortalece os direitos dos pais. A lei ainda prevê que os pais possam processar as escolas que não cumprirem a nova regra, cujo nome oficial é Lei dos Direitos Parentais na Educação, mas que foi apelidada por críticos e ativistas de “Não Diga Gay” (Don't Say Gay).
“Garantiremos que os pais possam enviar seus filhos à escola para obter educação, não doutrinação”, disse DeSantis antes de sancionar o projeto de lei. O governador falou a partir de um pódio no qual aparecia um cartaz que dizia “Proteja as Crianças/Apoie os Pais”.
Em sua conta no Twitter, o governador também disse: “O projeto de lei que sancionei hoje oferece proteção aos pais, garantindo a transparência curricular nas escolas. Na Flórida, estamos empoderando os pais.”
Medo da marginalização da comunidade LGBTQ
Ativistas também temem que a lei acabe tendo um efeito mais amplo. Um dos trechos da lei, estabelece que tais temas sejam vetados se eles forem levantados “de forma que não seja apropriado para estudantes”. O formato vago do texto, apontam ativistas, pode abrir caminho para que a lei seja aplicada não apenas aos alunos do primário, mas sim a todas as séries dos ensinos fundamental e médio.
Mesmo antes de ser sancionada, a lei recebeu muitas críticas, inclusive do próprio presidente americano, Joe Biden, que a chamou de “odiosa”. Brandon Wolf, da Equality Florida, uma organização não governamental que faz campanha pelos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgênero e queer, criticou, em entrevista à DW, que “é sempre apropriado reconhecer a existência e o valor das famílias LGBTQ − e que nós somos uma parte normal e saudável da sociedade”.
Entretanto, as consequências dessa lei vão muito além da falta de valorização. Muitas pessoas acreditam que tabuizar identidades de gênero alternativas e orientações não heterossexuais levará a ainda mais discriminação e violência. Esta é outra razão pela qual milhares de crianças em idade escolar e membros da comunidade LGBTQ se reuniram na semana passada para protestar.
“Educação sexual já no jardim de infância”
Eva Goldfarb, professora de saúde pública na Universidade Estadual de Montclair, em Nova Jersey, também está preocupada. Goldfarb trabalhou na área da educação sexual por 25 anos, treinou professores nos Estados Unidos e é coautora de um programa nacional sobre educação sexual nos EUA.
“A educação sexual e também a discussão sobre orientação sexual e identidade de gênero devem começar muito cedo, mesmo no jardim de infância”, mas de forma apropriada à idade e ao desenvolvimento, enfatiza a especialista. “As crianças são curiosas por natureza e começam a fazer perguntas, por exemplo, quando veem uma mulher grávida. E se elas mesmos tiverem duas mães, dois pais ou um irmão gay, por exemplo? O trabalho dos educadores e professores é ajudá-las a entender essas coisas, para que não se tornem assustadoras e virem tabu”, explica Goldfarb.
De acordo com a especialista, essa educação precoce lança as bases para que, mais tarde, jovens possam participar mais tarde de discussões mais complexas. “Não é diferente com outras matérias escolares”, destaca. “Ninguém pensaria em dizer que de repente ensinamos álgebra na oitava série sem termos antes ensinado matemática elementar”.
Como ensinar história, escravidão e racismo
A questão de como os professores devem falar sobre orientação sexual e identidade de gênero não é apenas controversa na Flórida − há projetos de lei semelhantes em outros estados. No Arizona, os professores devem informar os pais se seus filhos abordarem o tema da identidade de gênero. Em Indiana, as escolas têm que pedir o consentimento dos pais se quiserem abordar o tema da orientação sexual. E em Oklahoma foi apresentado um projeto de lei para proibir livros sobre o assunto nas bibliotecas escolares.
A questão da educação sexual é parte de uma guerra política mais ampla no campo da educação: em muitos lugares também há debates sobre como ensinar história, escravidão e racismo nas escolas.
Na Flórida, por exemplo, foi aprovada recentemente a “Stop Woke Act”. Entre outras coisas, a lei visa evitar que estudantes tenham que se envergonhar dos atos praticados pelos fundadores dos Estados Unidos. Isto diz respeito, por exemplo, à história da escravidão e à responsabilidade dos brancos no país. O “Stop Woke Act” também é dirigido contra a chamada Teoria Crítica da Raça, um conceito científico que define o racismo como um problema estrutural.
Pais devem participar na elaboração dos currículos
O curioso é que a Teoria Crítica da Raça nunca foi uma parte oficial do currículo escolar na Flórida. Assim como os tópicos de orientação sexual e identidade de gênero quase não constavam nos currículos do jardim de infância e da escola fundamental. A pergunta permanece: afinal, contra que tipo de “ameaça” se voltam as forças conservadoras do país?
No caso da Flórida, muitos suspeitam que o governador DeSantis queira ganhar prestígio dentro do Partido Republicano e junto aos eleitores. Brandon Wolf, da Equality Florida, também está convencido de que “tudo isso está voltado para que ele seja reeleito em 2022. E ele quer superar Donald Trump para poder concorrer às eleições presidenciais de 2024”.
Outra pergunta é: quem realmente quer e precisa destas leis? Em uma sondagem da empresa de pesquisa de mercado Ipsos, quase dois terços dos entrevistados nos EUA se opõem a leis como as da Flórida, que proíbem o ensino da orientação sexual ou identidade de gênero nas escolas primárias.
Aqueles que saíram às ruas aos milhares contra a Lei dos Direitos Parentais na Educação, incluindo muitos alunos, rejeitam a lei. E os pais deles, que, conforme a nova regra, obteriam mais possibilidades de intervir? “A maioria dos pais aprovam que instituições educacionais os ajudem na educação sexual. E, tanto quanto sei, a maioria dos estados já tem oferecem a opção de abrir mão da educação sexual. Portanto, se você não quer que seu filho participe da educação sexual, ele não é obrigado a participar”, sublinha Eva Goldfarb.
De acordo com Goldfarb, em alguns estados, como no Arizona, a criança só participa da educação sexual se os pais optarem ativamente para que isso ocorra.
Guerra política às custas das crianças
A ameaça invocada por ultraconservadores, de uma suposta ditadura de opinião de esquerda na área do racismo ou da sexualidade é, portanto, limitada. E mesmo que a orientação sexual e a identidade de gênero sejam discutidas abertamente em jardins de infância e escolas de ensino fundamental − o medo dos conservadores de que isso encoraje as crianças a se tornarem gays, lésbicas, transgênero ou queer é um perfeito disparate, de acordo com Eva Goldfarb.
“Não está cientificamente comprovado de forma alguma que o que você aprende na escola possa mudar sua orientação sexual ou identidade de gênero. Não é assim que a sexualidade funciona. Aqui estão sendo criados cenários assustadores que não existem na realidade”, frisa.
Sociedade polarizada
Pelo contrário, a especialista acha bizarro não falar sobre tais questões nos dias de hoje: “Para a geração mais jovem, nada disso é assunto de grande importância. E agora viemos nós dizer “não, não podemos mais falar sobre isso?”.
Enquanto a tendência em alguns estados americanos se move nesta direção, existem outros exemplos na sociedade polarizada dos Estados Unidos. No estado do Colorado, uma lei exige que as escolas públicas forneçam “educação sexual humana abrangente” desde 2019. Regulamentos similares também existem na Califórnia e em Nova Jersey.
A fim de reduzir problemas reais como uma alta taxa de aborto, discriminação e violência contra minorias sexuais, a professora Goldfarb espera que o atual “tom reacionário” diminua. Brandon Wolf, da Equality Florida está convencido: “Estas leis podem dar êxito político aos republicanos por um momento. Mas não é esse o caminho que o país seguirá em longo prazo”.
jps (AP, DW)