27/04/2022 - 10:28
Para o cientista político e sociólogo Luis Felipe Miguel, não cabem eufemismos para analisar o atual momento político do Brasil: ele vê um país em que a democracia “está fraturada” e denuncia que pilares do próprio Estado constitucional foram à falência na década passada, sobretudo a partir do processo de impeachment que destituiu a presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.
Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e coordenador do Grupo de Pesquisa Sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), Miguel acaba de lançar livro Democracia na periferia capitalista. Na obra, o autor contextualiza as fragilidades do arranjo político nacional a partir da trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), de sua criação, ascensão, auge — com a chegada ao poder, por meio da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente entre 2003 e 2010 —, e queda.
“O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Antes do novo livro, Miguel já publicou outros de cunho político, entre eles Democracia e representação: territórios em disputa, Consenso e conflito na democracia contemporânea e O Colapso da Democracia no Brasil: da Constituição ao Golpe de 2016.
À DW Brasil, ele aponta que parte da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, “os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo”. “Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática”, diz.
DW Brasil: De acordo com sua análise, por que a democracia está em risco no Brasil?
Luis Felipe Miguel: A democracia brasileira está bem baqueada, respirando por aparelhos. A derrubada da presidente Dilma Rousseff, em 2016, mostrou que um pilar da democracia liberal, o respeito aos resultados eleitorais, estava corroído. A perseguição judicial contra o Partido dos Trabalhadores, sobretudo por meio da Operação Lava Jato, mostrou a falência do outro pilar, o império da lei. O veto à candidatura do ex-presidente Lula, em 2018, naquilo que o cientista político Renato Lessa chamou de “impeachment preventivo”, retirou a legitimidade das eleições. Um veto, convém lembrar, que dependeu não só da atuação enviesada do Poder Judiciário como também da pressão das Forças Armadas: portanto, não se pode falar em neutralidade política dos militares e obediência aos governantes civis, que são outros elementos fundantes da democracia liberal.
É todo um processo de desmonte acelerado da ordem regida pela Constituição de 1988, que culmina na presidência de Jair Bolsonaro, alguém que não se cansa de alardear seu desprezo pelas liberdades, pela democracia, pela Constituição – e que vem agindo para destruí-las, com a cumplicidade ou a omissão dos outros Poderes.
Em suma, nós saímos de uma situação de democracia incompleta, em que muitas regras definidas nos textos legais tinham dificuldade de se efetivar (penso aqui sobretudo nos direitos sociais), para uma espécie de vale-tudo. A anarquia entre os Poderes, que vivem numa permanente queda de braço, é uma faceta. A outra é a liquidação de direitos e de garantias constitucionais, feita sem qualquer diálogo ou negociação com a sociedade.
O que está em jogo no Brasil, no momento, não é impedir que a democracia seja fraturada. Ela já está fraturada. É se haverá condição de retornar à trilha democrática, de recompor o que foi destruído, de reconstitucionalizar o país.
Nos últimos dias, mais uma vez o presidente Bolsonaro afrontou o Supremo Tribunal Federal (STF) ao conceder indulto ao deputado Daniel Silveira. Qual sua leitura sobre gestos assim? São sinais de que o atual presidente pode não aceitar o resultado das próximas eleições, por exemplo?
O comportamento de Bolsonaro é um exemplo claro daquilo que a ciência política chama de “seletividade das instituições”. Os governos de centro-esquerda tinham que reiterar, a todo momento, sua fidelidade às leis, seu republicanismo. Qualquer iniciativa que parecesse um pouco heterodoxa era recebida como afronta e rechaçada com alarido. Já Bolsonaro testa seus limites todos os dias e é respondido em geral com tolerância, por vezes com apelos para algum tipo de acerto, de composição – isto é, uma negociação sobre até que ponto as regras valem para ele. É um comportamento que só estimula novas bravatas, novas ameaças.
No caso do deputado Daniel Silveira, Bolsonaro concedeu um indulto que, legalmente, é questionável, mas do ponto de vista moral, não há dúvida nenhuma, é inaceitável. O Supremo mostrou pouca disposição para reagir, e agora Bolsonaro anuncia que está preparando uma anistia a todos os seus apoiadores condenados pela Justiça, afirma que não vai cumprir a decisão sobre o marco temporal caso o voto do relator, favorável aos povos indígenas, seja vitorioso, e assim por diante. São demonstrações de força que animam sua base militante, que é minoritária, insuficiente para vencer as eleições, mas muito aguerrida, muito agressiva.
A campanha incessante de denúncias infundadas contra o processo eleitoral tem esse mesmo objetivo. Alimenta a possibilidade de um novo golpe, que é algo com que Bolsonaro sonha, mas que até o momento não tem condições de realizar. E mantém motivada essa militância de extrema direita, para funcionar até como uma espécie de escudo humano contra uma eventual punição a ele mesmo e a seus filhos, por parte de um futuro governo democrático. O recado é: “Não mexam comigo que eu tenho muita gente disposta a tumultuar o país para me proteger.”
Como a sociedade deve reagir caso Bolsonaro não aceite o resultado das próximas eleições?
O problema é que Bolsonaro está ameaçando o processo eleitoral há muito tempo e nunca recebeu uma resposta à altura. Pelo contrário, o esforço era para apaziguá-lo. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) chegou a montar uma comissão de supervisão da segurança das urnas eletrônicas com representação militar, o que é absolutamente descabido. É como se o bolsonarismo agisse de boa fé, como se a comprovação de que o processo é idôneo fosse calar as acusações. Mas eles sabem que as urnas são seguras, o que querem é manter a base mobilizada, tumultuar.
É inadmissível ter um candidato e, pior, aquele que ocupa a presidência da República trabalhando para subverter o processo eleitoral. Mas é cada vez mais difícil se opor a isso, já que as mentiras e ameaças de Bolsonaro se tornaram parte do cenário.
O correto, a meu ver, diante de ameaças contra a realização das eleições ou de desrespeito a seus resultados, seria afastá-lo imediatamente do cargo, como medida profilática, necessária para resguardar o que resta de democracia no país. Mas duvido que haja coragem para tal. O que é necessário, então, é mobilizar a sociedade civil. As pessoas precisam saber que nestas eleições não basta votar. Temos que estar preparados para garantir, por meio de nossa pressão, o respeito ao resultado eleitoral.
Em sua análise, quais fatores levaram à atual crise da democracia brasileira? São mais fatores internos – e isso teria a ver com a própria crise do PT e dos partidos mais à esquerda – ou são fatores externos?
Há uma crise da democracia que não é exclusividade do Brasil, que se manifesta mesmo nos países que, dizia-se, tinham democracias plenamente consolidadas. É um fenômeno global, portanto. Mas é claro que o caso brasileiro não é simplesmente a expressão local da crise geral; ele precisa ser entendido à luz das nossas especificidades.
Muito da literatura da ciência política associa a crise da democracia à emergência de movimentos e líderes políticos autoritários, que desprezam as liberdades, tentam massacrar a oposição e usam as regras do jogo democrático para destruí-lo por dentro – os populistas de direita, dos quais Bolsonaro é um exemplo. Mas creio que eles são antes um sintoma do que a causa da decadência democrática.
Há um processo anterior de “desdemocratização”, isto é, de perda de efetividade das instituições democráticas, cujas origens estão no agravamento das tensões na convivência, desde sempre conflituosa, entre economia capitalista e democracia política. […] Em países periféricos, como o Brasil, o arranjo democrático sempre funcionou de maneira mais travada. Nossa economia tem menos gordura para gastar, e nossa classe dominante tem pouca autonomia, já que está acomodada na posição de sócia menor do capitalismo internacional. Portanto, a margem de manobra para a acomodação de pressões, necessária para a convivência entre democracia e capitalismo, é bem menor.
O PT chegou ao governo ciente desse fato e propondo uma política de mínimo atrito. Seu propósito era não afrontar os interesses dominantes, mas buscar brechas que permitissem garantir um padrão mínimo de vida para todos. Ainda assim, pôs em marcha mudanças que acabaram incomodando.
Por um lado, a economia brasileira é pouco dinâmica, sua competitividade é muito dependente da baixa remuneração da mão de obra. A redução da miséria tem como efeito lógico permitir que a força de trabalho negocie a sua venda em condições menos desvantajosas, logo tende a reduzir o nível de exploração.
Por outro lado, a nossa classe dominante tem o complexo de ser, na verdade, dominada por seus parceiros externos. Por isso, para ela, assim como para a classe média que nela se espelha, a manutenção das distâncias sociais tem um papel fundamental. Temos uma classe dominante alérgica à igualdade, por isso mesmo as medidas cautelosas dos governos petistas geraram tanta reação.