A Prefeitura de São Paulo internou 22 usuários de drogas para tratamento contra a dependência química sem o consentimento deles, em uma medida permitida por lei. Na chamada internação involuntária, o consentimento de um familiar e a assinatura de um médico são suficientes para a hospitalização, sem a necessidade da anuência do próprio usuário de drogas. A informação foi divulgada inicialmente pela Rádio Bandeirantes e confirmada pelo Estadão.

Desde o dia de 27 de abril, os dependentes químicos estão sendo levados para o Hospital da Bela Vista, na região central da capital paulista, para um prazo máximo de internação de 90 dias. O hospital é referência no tratamento de usuários de crack. A ação do poder municipal foi iniciada duas semanas depois de usuários e traficantes se deslocarem das imediações da Luz para a Praça Princesa Isabel, na região central. No início de maio, uma grande operação policial removeu o chamado “fluxo” da praça, que se espalhou por vários pontos do centro de São Paulo.

É a primeira vez que a gestão municipal recorre a essa medida. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a nova Lei de Drogas, que autoriza a internação sem a anuência dos usuários. “Estamos seguindo rigorosamente os parâmetros legais”, afirma Alexis Vargas, secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura de São Paulo. Ele ainda considera que a tendência “é o aumento do número de internações”. “Com a redução do número de usuários na Rua Helvétia, os familiares estão conseguindo encontrar os usuários. Existe um aumento da procura por atendimento”, diz.

Dados oficiais apontam que o encaminhamento de usuários para atendimento no Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (SIAT II) aumentou quase cinco vezes entre janeiro e abril, passando de 27 para 133 usuários abusivos de álcool e outras drogas, conforme dados da Secretaria Municipal da Saúde. Ainda de acordo com números da Prefeitura, os principais pontos de concentração dos usuários são a Rua Helvétia, nas proximidades com a Avenida São João, com cerca de 250 usuários, e a Rua Gusmões, com 150 dependentes químicos.

PREOCUPAÇÃO

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) mostrou preocupação quanto à chamada “porta de saída”, ou seja, o destino do dependente químico após a internação de 90 dias. “O objetivo da internação voluntária é a desintoxicação. Não é possível resolver o uso abusivo de drogas neste período. Depois, o usuário vai para onde? Qual é a porta de saída da comunidade terapêutica e dos hospitais psiquiátricos? Ele fica 90 dias e sai sem trabalho, sem moradia e sem renda”, afirma o promotor de Saúde Pública Artur Pinto Filho.

“A história mostra que ele volta para o único lugar que ele conhece e que o acolhe que é a região central. Se você não estabelecer uma porta de saída muito boa, você está jogando dinheiro público no lixo. A pessoa vai ficar internada e vai voltar para o lugar que ele conhece”, completa o promotor. Artur Pinto Filho se refere à adoção da medida em 2017, quando o então prefeito João Doria ofereceu vagas em clínicas psiquiátricas após grande operação policial na Estação Julio Prestes, antigo endereço da Cracolândia. Após três meses daquela ação, entre as 734 internações, só 122, ou cerca de 17%, foram levadas até o fim.

DIVISÃO

A determinação da Prefeitura de São Paulo ainda divide a opinião de especialistas. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, presidente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), defende a internação involuntária há anos. “Se você tiver pessoas que estão sem condições de cuidar de si mesmas, e o médico atestar que ela está doente e algum responsável concordar com o médico, a internação involuntária é um ato civilizatório. Cabe ao Ministério Público checar se as internações estão sendo feitas adequadamente. Todos os países têm formas de internação involuntária. Se vai dar certo, depende do tratamento adequado e das condições de cada pessoa”, diz o médico, que é uma das principais referências no tratamento de dependentes químicos no País. “Não posso responder pelo tratamento (oferecido pela Prefeitura), mas se fosse meu filho, do ponto de vista teórico, eu internaria involuntariamente.”

Seguindo a mesma linha de raciocínio, o psiquiatra Claudio Jerônimo, faz referência aos grupos mais antigos de usuários – aqueles que vivem na Cracolândia há mais de cinco anos. “Algumas comorbidades, como psicoses, tornam o acesso a eles muito difícil, se não impossível. Esse grupo não está acessível para convencimento para tratamento. Para casos assim, a internação involuntária é a única saída para que tenham chance de serem tratados.

Por outro lado, o advogado Cristiano Maronna, representante da Ordem dos Advogados do Brasil no Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Comuda), vê o risco de massificação da internação involuntária. “É uma medida que não pode ser massificada. Estar sob efeito de drogas, ser dependente ou viver em situação de rua são circunstâncias que não justificam a internação involuntária. Para as pessoas da região da Cracolândia falta o básico, como alimentação, moradia, renda. É isso que falta. A internação reforça a exclusão dessas pessoas.”

Já a socióloga Nathália Oliveira, da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política Sobre Drogas, acrescenta o contexto político de um ano eleitoral. “Essas pessoas precisam de cuidado integral da saúde para adquirir autonomia. Essa pauta tem sido utilizada em um ano eleitoral como uma disputa pela opinião pública. É uma medida higienista juntamente com a violência policial”, afirma.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.