08/06/2022 - 9:37
O desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira coloca luz sobre os problemas amazônicos. Cada vez mais, a região parece uma terra sem lei, avalia o colunista.Fiquei chocado com a notícia do sumiço de Dom Phillips e de Bruno Pereira no Vale do Javari, no domingo. É uma das regiões que concentra a maior quantidade de povos indígenas isolados do mundo. Agora, os dois viajantes estão sendo procurados nessa vasta área. Tive pouco contato pessoal com Dom Phillips, mas sempre li com interesse as matérias dele sobre o Brasil, publicadas no jornal britânico The Guardian. A Amazônia claramente foi o foco do seu interesse.
Sempre me lembro da participação de Philips num café da manhã do presidente Jair Bolsonaro com a imprensa estrangeira, em julho de 2019. Na ocasião, Phillips perguntou ao presidente sobre o crescimento “assustador” do desmatamento na Amazônia. A resposta de Bolsonaro virou um clássico: “Primeiramente, você tem de entender que a Amazônia é do Brasil. Não é de vocês”, respondeu um visivelmente irritado Bolsonaro.
Depois, o presidente suspeitou dos interesses de ambientalistas estrangeiros pela Amazônia e colocou em dúvida os números do desmatamento. “Nós preservamos mais que todo mundo! E nenhum país do mundo tem moral de falar sobre a Amazônia. Porque vocês destruíram seus ecossistemas praticamente. Mas só cobram de nós.”
Depois, o general Augusto Heleno, sentado entre Bolsonaro e Phillips, pegou o microfone, acusando que “a maioria dos grandes defensores da Amazônia nunca botaram o pé lá”.
Dom Phillips com certeza botou seus pés várias vezes na Amazônia. E ainda mais Bruno Pereira, um dos mais respeitáveis indigenistas do Brasil.
Tive mais contato com Pereira do que com Phillips. Conversamos em diversas ocasiões e o entrevistei várias vezes. Ele contou sobre suas expedições no Vale do Javari, para entrar em contato com indígenas dos povos korubo e matis. Como coordenador-geral de Índios Isolados e de Recém Contatados da Fundação Nacional do Índio (Funai), Pereira falava sobre a falta de verba para proteger essa vasta área de selva – principalmente frente ao aumento da violência naquela região.
Pereira fez relatos sobre os ataques às bases da Funai e o aumento das atividades ilegais de garimpeiros, madeireiros e caçadores, além de traficantes de drogas e de peixes ornamentais. A demissão de Pereira pelo governo Bolsonaro, em outubro de 2019, foi vista como um péssimo sinal pelos indigenistas brasileiros. Eles temiam que o desmanche da Funai na região anunciava um genocídio dos povos isolados no Vale do Javari.
Construção de narrativa por Bolsonaro
Infelizmente, há de se temer que tanto Pereira como Phillips tenham sido vítimas da crescente violência naquela parte da Amazônia. Havia ameaças contra Pereira, pois seu trabalho pôs muita gente em rota de conflito com ele.
Ainda resta esperança, espero. Mas a notícia triste pode vir a qualquer momento. De repente, justamente enquanto o Bolsonaro estiver na Cúpula das Américas, em Los Angeles, onde a proteção da Amazônia será um tema importante na agenda do presidente americano, Joe Biden. Bolsonaro poderia declarar a Amazônia uma região controlada pelo governo brasileiro, se, ao mesmo tempo, chegar a triste notícia de um crime cometido lá?
Bolsonaro já começou com a construção de uma narrativa: classificou, numa entrevista para uma emissora de televisão, como “aventura não recomendável” o trabalho de Pereira e Phillips no Vale do Javari. “Pode ser acidente, pode ser que eles tenham sido executados”, disse.
O Exército brasileiro quase demorou 48 horas para iniciar suas buscas, depois de vários apelos de familiares e organizações da sociedade civil. Há quem fala do aparentemente pouco interesse do governo de realmente ajudar nas buscas. Bom lembrar que o Comando Militar da Amazônia já foi liderado pelo general Augusto Heleno. Sabemos o que ele pensa sobre jornalistas estrangeiras que se metem em assuntos (e matos) brasileiros.
Terra sem lei
Eu também já botei meus pés na Amazônia, como muitos dos correspondentes estrangeiros que trabalham no Brasil. Viajei com frequência pela região durante os últimos 25 anos. Passei um tempo num garimpo ao sul de Manaus, como, também, com Davi Kopenawa na aldeia yanomami onde ele vive em Roraima. Vi o sofrimento dos tenharins, quando os líderes deles foram atacados e acusados depois do sumiço de brancos no território indígena. Viajei com uma equipe do Greenpeace em tempos de ameaças de morte contra os ativistas.
Mas encontrei também soldados da Força Nacional e do Ibama, que, estacionados no meio da selva, temiam ataques por garimpeiros. Fui surpreendido, numa viagem com agentes do Ibama, por queimadas no meio da selva. Vi desmatamento ilegal, gado em terras supostamente protegidas e grupos evangélicos na missão de evangelizar os indígenas. Enquanto isso, vi cada vez mais cartazes nas estradas e adesivos em 4×4 que circulam na Amazônia com fotos de Bolsonaro. A Amazônia virou um dos núcleos mais fortes do bolsonarismo.
Ao mesmo tempo, vejo a Amazônia se tornando cada vez mais uma terra sem lei. Eis a minha impressão. Torço muito que Dom Phillips e Bruno Pereira possam escapar desse pesadelo.
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
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