31/08/2022 - 6:24
Agenda ideológica, omissão e falta de coordenação e diálogo deram a tônica da gestão da área nos últimos quatro anos, marcada por escândalos e dança das cadeiras no MEC, apontam especialistas.Marcada por escândalos e uma série de trocas de ministros, a gestão da educação no governo do presidente Jair Bolsonaro trouxe retrocessos principalmente por inação e falta de coordenação, o que se tornou mais desastroso durante a pandemia, apontam especialistas e representantes do movimento estudantil ouvidos pela DW Brasil. A ideologia, avaliam, ficou mais no discurso do que na ação.
“Em nível federal, foram quatro anos de uma gestão trágica, e isso sem contar as denúncias de corrupção”, afirma Gabriel Corrêa, gerente de Políticas Educacionais da organização da sociedade civil Todos pela Educação.
O Ministério da Educação sob Bolsonaro é acusado de ter como marca registrada a falta de diálogo com estudantes, sociedade civil e governos locais. “Desde o primeiro dia, temos tentado apresentar demandas estudantis, mas não há abertura. O mandato de Bolsonaro inteiro foi com a gente fazendo manifestação em frente ao MEC, e o MEC não dando nenhuma resposta”, diz Bruna Brelaz, aluna da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp) e presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Protestos também foram organizados durante outros governos. A diferença, aponta ela, é que, em outras gestões, “os ministros, mesmo com divergências, tinham o respeito de receber os estudantes”.
“Bolsonaro não vê a educação como elemento central para o desenvolvimento da nação. Todas as gestões de ministros da Educação comandadas por ele foram de corte de verbas e ataque a universidades. São gestões corruptas que desviam recursos para viabilizar uma reeleição”, denuncia Brelaz. “Nós consideramos que o Bolsonaro é o inimigo nº 1 da educação e dos estudantes.”
A falta de diálogo, ressaltam a UNE e o Todos pela Educação, também era a tônica na relação com secretários de educação, algo que trouxe prejuízos maiores durante a pandemia de covid-19.
“Nesse contexto [da pandemia], a gente viu um MEC arrumando conflito com estados e municípios, completamente omisso em suas atribuições de coordenar a resposta à pandemia”, critica Corrêa, que é economista e mestre em educação pela Universidade de São Paulo (USP).
“Num país como o Brasil, grande e desigual, a atuação federal é muito importante para reduzir assimetrias. Sem essa coordenação e diálogo, cada estado e município faz de um jeito, uns abrem escola mais cedo, outros não”, afirma. Além de prejudicar a aprendizagem, o longo fechamento de escolas preocupa especialistas por agravar problemas como a evasão.
Guerra cultural
Na avaliação de Corrêa, sob Bolsonaro a educação foi instrumentalizada para manter a fidelidade de eleitores com motivações ideológicas. “A estratégia de promover uma falsa e pretensiosa guerra cultural vem pela necessidade de inflamar uma base de apoiadores mais convictos e mostrar que Bolsonaro está fazendo o que prometeu”, comenta.
“Afinal, o presidente ganhou a eleição dizendo que o problema era o Paulo Freire, o 'kit gay'… Falar contra universidades, dizer que as escolas estão sexualizando as crianças, por exemplo, é estratégia para agradar essa base”, analisa. “E quando você coloca, no MEC, gestores para fazerem isso, serão pessoas que não sabem operar a máquina pública e nada sai do lugar.”
Focado em combater “problemas irreais” a partir de determinadas convicções, o MEC acabou não dialogando com estados e municípios nem fazendo “nada de concreto”, mesmo no que tinha a ver com a pauta ideológica, o que pode ter barrado mudanças significativas em programas consolidados, considera Corrêa.
“O governo é tão incompetente que não conseguiu mexer nem nas políticas que queria mexer. No Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o presidente estava preocupado com algumas poucas questões que falavam de fato histórico do qual ele discorda e há denúncias de que houve censura em alguns itens, mas isso não afetou a qualidade do exame”, comenta.
Dança das cadeiras
As constantes trocas de ministros — quatro ocuparam o cargo desde 2019 (Ricardo Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Milton Ribeiro e Victor Godoy) e um só não tomou posse porque mentiu no currículo (Carlos Decotelli) — e secretários no MEC tiveram como resultado uma gestão fragmentada. “Não tem visão e continuidade”, observa Corrêa.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Remi Castioni concorda que “o MEC se perdeu em algumas agendas” e, em meio a constantes trocas, não tinha a estabilidade necessária para lidar com os desafios da área. Ele considera que houve certa melhora mais recentemente, após a saída de Abraham Weintraub, quando acredita que “houve diminuição da agenda de costumes” na educação.
“Embora o ministro que assumiu, o Milton Ribeiro, tenha sido pego em conversas nada republicanas envolvendo tráfico de influências na destinação de emendas parlamentares, um conjunto de técnicos assumiu funções nas secretarias de educação básica e ensino superior”, comenta o economista e pesquisador de políticas públicas e gestão da educação, fazendo referência ao escândalo que ficou conhecido como “farra dos pastores”.
Maiores avanços foram desconectados do MEC
De acordo com Corrêa, com implementações positivas isoladas, a omissão e a má gestão do MEC deixaram uma lacuna na área, o que forçou a atuação mais firme de outras entidades, “na tentativa de suprir essa falta de coordenação e evitar ainda mais retrocessos”.
Ele e Castioni citam, entre as instituições que tiveram atuação de destaque no período, o Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Educação (CNE), o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), movimentos sindicais, além de organizações da sociedade civil e do terceiro setor, como o próprio Todos pela Educação.
Castioni e Corrêa enxergam o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) como um dos principais avanços da educação nacional dos últimos tempos. E o protagonismo inédito do Congresso brasileiro, com a Frente Parlamentar Mista da Educação, foi fundamental para, a contragosto do governo federal, regular o fundo, com a Lei nº 14.113/2020, que o tornou permanente.
Castioni observa que o CNE também teve protagonismo como nunca antes “ao liderar um processo de retomada das escolas, uma vez que o próprio MEC se omitiu”.
Nos últimos anos, o CNE também aprovou normas importantes, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (resolução nº 2/2019) e a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar (que ainda precisa ser homologada pelo MEC).
Ensino superior de lado
Castioni enxerga mais progressos e articulações na educação básica do que na superior. A primeira passará a ter mais recursos por meio do novo Fundeb, mas não existe equivalente para a segunda, que, além de ter tido cortes orçamentários, vê-se limitada pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, do teto de gastos.
A presidente da UNE aponta como maiores falhas da gestão Bolsonaro no âmbito das universidades federais “o corte de mais de R$ 400 milhões de verbas discricionárias” e “colocar em xeque a democracia e a autonomia universitária”, ao nomear cerca de 20 reitores que não venceram as eleições internas nas instituições.
“E isso tudo está interligado com o viés ideológico do governo, que já começou dizendo que na universidade só tinha balbúrdia, e o próprio Bolsonaro desrespeitando o movimento estudantil, dizendo que os CAs [Centros Acadêmicos] eram 'ninho de rato'”, relembra.
Brelaz e Castioni salientam que os cortes orçamentários também impactam as bolsas-permanência para alunos de baixa renda, fundamentais para garantir a permanência deles no ensino superior público.
Brelaz critica também ações implementadas no Programa Universidade para Todos (Prouni) e no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) sem diálogo com o movimento estudantil. No primeiro, ela condena a inclusão de estudantes da rede particular sem bolsa por “afastar o aluno de escola pública para colocar na fila outros que teriam mais condições de pagar”.
No Fies, a possibilidade de renegociação de dívidas aberta para cerca de 1 milhão de inadimplentes seria um avanço parcial. “Não houve perdão, mas renegociação. Queríamos que esses estudantes fossem perdoados”, diz a presidente da UNE.
Desafios para o próximo governo
Independentemente do resultado das eleições, quem assumir a pasta da Educação em 2023 enfrentará vários desafios. O governo atual deixa o MEC e suas autarquias enfraquecidos.
A melhoria da aprendizagem é outro obstáculo. Brelaz defende que a próxima gestão priorize, como projeto de curto prazo, um plano para recuperação emergencial da educação por causa da pandemia.
“Temos acompanhado o preocupante aumento da evasão dos estudantes do ensino fundamental, principalmente nos anos finais, e médio”, constata.
Castioni indica que há “um conjunto de definições muito importantes e que precisam ser implementadas” no próximo governo. Entre elas, ele cita a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Novo Ensino Médio — aplicado em 26 unidades da Federação e a ser implementado na Bahia em 2023 — e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica.
Contatado pela DW Brasil, o MEC não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Relembre quem foram os ministros da Educação sob Bolsonaro
Ricardo Vélez Rodríguez, de janeiro a abril de 2019. Movido por interesses ideológicos, queria patrulhar o conteúdo do Enem e mudar a forma como a ditadura era ensinada.
Abraham Weintraub, de abril de 2019 a junho de 2020. Seguidor de Olavo de Carvalho, criava conflitos com diversos setores, fazia discursos contra universidades, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), e acabou sendo alvo de inquérito do STF.
Carlos Decotelli, junho de 2020. Nem chegou a tomar posse depois de ter sido pego mentindo no currículo sobre formação e atuação em faculdades do Brasil, da Argentina e da Alemanha.
Milton Ribeiro, de junho de 2020 a março de 2022. Pastor presbiteriano que foi pego dando preferência no repasse de recursos para prefeitos que negociassem com pastores da Assembleia de Deus. Chegou a ser preso pela PF e responderá por corrupção.
Victor Godoy, desde abril de 2022. Era o nº 2 durante a gestão de Milton Ribeiro e assumiu para substituí-lo.