Em 1822, a imprensa brasileira não registrou a data em que hoje se celebra o Dia da Independência. Narrativas memorialísticas e o famoso quadro “Independência ou Morte” ajudaram a construir imagem do “grito do Ipiranga”.A ideia, como se fosse uma fotografia, está lá eternizada em um dos quadros mais famosos da iconografia brasileira: a pintura Independência ou Morte, feita por Pedro Américo (1843−1905) e pertencente ao acervo do Museu do Ipiranga, em São Paulo.

Na cena, um imponente príncipe Pedro (1798−1834), bem vestido e do alto de um garboso cavalo, empunha a espada às margens do rio Ipiranga. Muita gente em volta testemunha o acontecimento histórico.

Na prática, contudo, nada disso ocorreu. E nem o 7 de setembro de 1822 foi tratado com a importância que depois a história lhe reservaria.

“Não há nenhum registro contemporâneo do ocorrido naquele dia, se analisarmos os jornais da época. A imprensa do Rio de Janeiro, gradativamente ao longo daquele mês, noticiou um acirramento da ideia de autonomia [do Brasil]. Mas não houve uma narrativa organizada”, pontua o historiador Marcelo Cheche Galves, estudioso de jornais do período e professor na Universidade Estadual do Maranhão.

“Independência ou morte”

Então príncipe regente, Pedro havia deixado o Rio de Janeiro em agosto e empreendido viagem à província de São Paulo com o objetivo de reforçar alianças e acalmar os ânimos de parte da elite incomodada com o cenário político que se desenhava. No dia 2 de setembro, em reunião presidida pela princesa Leopoldina (1796−1826), o Conselho de Estado tomou o partido de que o melhor para o Brasil seria a separação de Portugal.

Cartas foram escritas e um oficial encarregado de entregá-las a Pedro, nas terras paulistas, para fazê-lo saber do contexto. O encontro ocorreu no Ipiranga, já que o príncipe e sua comitiva estavam retornando de uma viagem a Santos. No dia seguinte, no Pátio do Colégio − na época, sede do governo paulista −, ele fez um discurso, informando os poderosos locais sobre a situação de ruptura.

“Após retornar ao Rio de Janeiro, depois da viagem a São Paulo, a data de 7 de setembro não foi noticiada na imprensa, muito menos comemorada. É importante lembrar que nem mesmo Dom Pedro fez menção a qualquer declaração de Independência na proclamação pública que dirigiu aos paulistas em 8 de setembro de 1822”, ressalta a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora na Universidade de São Paulo (USP), autora do recém-lançado Ideias em Confronto − Embates pelo Poder na Independência do Brasil e coorganizadora do Dicionário da Independência do Brasil.

A historiadora lembra, contudo, que, nesse pronunciamento, o monarca “pediu que todos tivessem como lema a frase 'independência ou morte' e que se mantivessem em alerta em relação a possíveis confrontos pela presença e pela ação de grupos políticos que defendiam propostas diferentes da separação de Portugal e da monarquia”.

Galves lembra que a independência brasileira foi um processo, não algo ocorrido da noite para o dia. Nos registros da imprensa, há indicativos fortes disso. Em junho, Pedro convocou uma assembleia com o objetivo de elaborar a primeira Constituição brasileira. “Por isso, em 1º de agosto, jornais em Londres publicam que isso já significava a independência”, pontua o historiador.

Naquele contexto, contudo, a data magna da Independência do Brasil acabaria sendo o 12 de outubro. Aniversário de 24 anos de Pedro, foi nesse dia que ele acabou aclamado imperador. “Houve um decreto transformando o Reino do Brasil em Império, ainda dentro do Reino Unido [de Portugal]”, diz Galves.

O 7 de Setembro instituído por Dom Pedro

O 7 de Setembro acabaria sendo recuperado e valorizado a partir do ano seguinte. Em discurso na Assembleia Constituinte, em 3 de maio de 1823, o já imperador Pedro 1º escolheu frisar a importância dos acontecimentos em São Paulo.

“Foi o próprio Dom Pedro que criou a memória do dia 7 de Setembro”, aponta Oliveira. “Era uma maneira de valorizar sua ação e, particularmente, sua autoridade. Essa narrativa de Dom Pedro acabou por instituir a memória com a qual aprendemos a conhecer a Independência até hoje.”

“Ali ele organizou o passado da maneira como nós temos conhecimento”, afirma Galves. Em seu discurso, o monarca referiu-se aos paulistas como “brioso povo” e qualificou a província como “agradável e encantadora”.

“[Por meio da declaração, Pedro] afirmava que teria sido ele próprio o responsável pela decisão de ruptura da unidade luso-brasileira”, salienta a historiadora Maria de Lourdes Viana Lyra, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em artigo publicado na Revista Brasileira de História em 1995.

No pronunciamento, o imperador afirmou que “a nossa independência foi lá [em São Paulo] primeiro que em alguma parte proclamada, no sempre memorável sítio do Piranga”. E também citou que ali “fui pela primeira vez aclamado imperador”.

Lyra analisa que a intenção teria sido provocar “um tom de afirmação categórica com a intenção de dirimir dúvidas existentes ou criar uma nova interpretação sobre o fato definidor da proclamação da Independência e da aclamação do imperador”. Mas lembra que essa narrativa “permaneceu, no entanto, ainda por um tempo sem repercussão, não encontrando eco imediato nos registros da época”.

Sete de setembro ou 12 de outubro?

Segundo o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de, entre outros, Independência: A História Não Contada, o Brasil tinha uma dupla comemoração, em 7 de setembro e em 12 de outubro, pelo menos até 1831. “O 7 de setembro era comemorado como uma data mais militar. O 12 de Outubro, como uma data festiva nacional, com a ideia de que naquele momento o povo havia escolhido o seu primeiro monarca”, contextualiza.

“O 7 de Setembro, inicialmente, era apenas uma data de referência. O celebrado como emancipação política era o 12 de Outubro, como data principal”, comenta o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista.

“Essa segunda data começou a ser apagada da história a partir da abdicação de Dom Pedro [em 7 de abril de 1831], porque os deputados e senadores não queriam mais associar a Independência à data que também era aniversário de Dom Pedro”, acrescenta Rezzutti. “O 12 de Outubro começa gradualmente a ser esquecido e a dar lugar ao 7 de Setembro.”

Ao mesmo tempo, diversas narrativas memorialísticas passam a ser publicadas, reforçando o episódio ocorrido às margens do Ipiranga. Por exemplo, um relato atribuído ao padre Belchior Pinheiro de Oliveira (1775−1856), integrante da comitiva da viagem de Pedro a São Paulo e visto como conselheiro do nobre.

Em seu texto, ele fez constar o diálogo que teria ocorrido naquele momento e enfatizou que as palavras do então príncipe diziam “nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal”. O problema é que esse relato foi publicado apenas em 1826, ou seja, quatro anos após o fato − e com um contexto ideológico já mais assentado.

O imaginário demorou para se cristalizar, evidentemente. “A construção sobre o episódio da independência tomou corpo em meados do século 19, na forma de homenagens, análises e descrições”, diz Martinez. “A tela de Pedro Américo [Independência ou Morte], sua exposição e sua divulgação, acabou dando a visibilidade e fixando a imagem, com toda a cenografia e a postura altiva que o quadro representa.”