12/09/2022 - 8:02
Autoridades alemãs investigam crimes cometidos por soldados russos e já colheram depoimentos de centenas de refugiados ucranianos. Ex-moradora de Bucha, por exemplo, relatou ter visto famílias inteiras mortas a tiros.”Colocamos barricadas de tijolos nas janelas quando ouvimos os bombardeios por perto”, comenta Tetyana Kun sobre o início da invasão russa à Ucrânia, no fim de fevereiro. Seis meses depois, a mulher de 65 anos vive como refugiada em Berlim e recorda os dias da ocupação de Bucha, perto de Kiev, com lágrimas nos olhos.
“Um dia, acho que era 10 de março, vi por uma fenda na janela um comboio de carros descendo a rua com bandeiras brancas e uma placa que dizia 'crianças'”, diz ela. No dia seguinte, ela se aventurou pela cidade pela primeira vez em semanas, pois o comboio lhe havia despertado esperança de uma evacuação. Mas Kun ficou chocada com o que viu. “O comboio que eu tinha visto no dia anterior tinha sido completamente destruído”, diz ela.
Ela se lembra de ter visto carros capotados e pneus queimados; travesseiros, cobertores e roupas de criança cheios de buracos; mochilas e malas jogadas por todos os lados “Havia muito sangue nos carros”, conta. Um soldado russo parado em um bloqueio na estrada apareceu e ela perguntou o que havia acontecido com o comboio. Ele contou que os russos tinham atirado neles “porque não sabiam quem estava nos carros”.
Centenas de relatos de testemunhas
Até sua fuga, em 19 de março, Kun testemunhou muitos crimes cometidos pelos invasores russos. Atrocidades que depois chocaram o mundo quando o Exército ucraniano retomou Bucha, no início de abril.
Julia Gneuss do Departamento de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Potsdam destaca a importância de Kun contar às autoridades alemãs o que viu.
“Investigações relacionadas a crimes de guerra na Ucrânia fazem parte de procedimentos de investigação”, disse a advogada à DW, acrescentando que as informações são coletadas para “montar o quebra-cabeça de forma mais detalhada possível”.
Em junho, o Parlamento alemão aprovou o financiamento de mias funcionários para investigar supostos crimes de guerra cometidos pelo Exército russo na Ucrânia. A Procuradoria-Geral da República, que coordena a investigação, afirmou que reuniria “todas as evidências de crimes de guerra”. Autoridades policiais já colheram centenas de depoimentos de refugiados ucranianos indicando crimes de guerra, segundo a Procuradoria-Geral.
Condenação na Alemanha é improvável
Considerando que há cerca de um milhão de refugiados ucranianos na Alemanha, é difícil dizer se reunir apenas algumas centenas de testemunhos pode ser considerado um sucesso. Kun, por exemplo, ainda não testemunhou perante às autoridades alemãs. “Não sei a quem recorrer. E como vou fazer? Eu não sei alemão”, comenta.
Em um esforço para facilitar o processo, o Departamento Federal de Investigações (BKA, na sigla em alemão) distribuiu folhetos entre os refugiados para explicar que as pessoas podem testemunhar em qualquer delegacia do país, e que podem preencher questionários em ucraniano. Com base nesses documentos, as autoridades avaliam com que testemunhas falar, com a ajuda de um intérprete, se necessário.
A Alemanha adicionou os princípios do direito humanitário internacional à própria legislação há 20 anos. Isso significa que qualquer pessoa responsável por crimes de guerra pode ser condenada por um tribunal alemão, não importando onde os crimes foram cometidos.
Crimes de guerra incluem ataques de soldados contra a população civil e contra infraestrutura civil, como áreas residenciais, hospitais, estações de trem e escolas. Também são considerados crimes de guerra assassinatos e torturas de civis ou prisioneiros de guerra, execuções extrajudiciais, estupro e uso de armas proibidas pelas convenções internacionais, como bombas de fragmentação e armas químicas.
Porém, não estão previstos na lei alemã julgamentos na ausência do acusado. Para condenar os russos responsáveis pelas atrocidades em Bucha, eles teriam que estar na Alemanha, o que é muito improvável.
Isso levanta a questão de quão significativas são as investigações alemãs. Basicamente, as autoridades querem evitar que o país seja um porto seguro para violadores do direito internacional, diz Julia Gneuss. E, se um suspeito fosse pego em outro lugar na Europa, a Alemanha poderia fornecer os relatos das testemunhas para ajudar a condenar os criminosos de guerra.
Assassinatos e saques
Kun viu soldados russos armados ameaçarem e roubarem moradores de Bucha. “Uma vez, um tanque parou em um açougue no centro da cidade. Os soldados saíram e começaram a atirar em diferentes direções enquanto outros saqueavam. Eles atiraram nas janelas ao redor, provavelmente para ter certeza de que ninguém estava tirando fotos ou filmando”, diz ela.
A pior memória, no entanto, é da Rua Yablunska, na periferia da cidade, a área onde Kun nasceu e passou a infância. Ela viu famílias inteiras mortas a tiros em seus próprios jardins.
“Não havia só cadáveres na rua, mas também cães mortos – eles atiraram até nos cachorros”, diz Kun. Segundo autoridades locais, mais de 400 civis foram mortos só em Bucha.