Gabriel Stargardter – Uberaba (Reuters) – Em agosto do ano passado, o agricultor brasileiro Reinaldo Huijsmans reportou um arrombamento em sua casa na cidade de Maracaju, no Mato Grosso do Sul, onde ladrões roubaram seis armas registradas legalmente, incluindo um fuzil Taurus T4.

Huijsmans, de 39 anos, é um entre centenas de milhares de brasileiros agora registrados para possuírem armas, grupo que aumentou de tamanho em seis vezes desde que o presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 e começou a afrouxar as normas sobre acesso a armamento.

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Dois meses depois, o T4 de Huijsmans reapareceu a 1.300 quilômetros de distância, nas mãos de uma quadrilha fortemente armada de supostos ladrões de bancos que foram emboscados e mortos por policiais perto da cidade de Varginha, em Minas Gerais, segundo um inventário de armas apreendidas da quadrilha visto pela Reuters.

O caminho inesperado do fuzil de assalto de Huijsmans, que a Reuters pôde rastrear a partir do número de série do T4 fornecido pelo proprietário em seu depoimento original à polícia, não havia sido reportado anteriormente.

A presença da arma nas mãos de um grupo de supostos ladrões de bancos destaca o que a Polícia Federal e especialistas em segurança pública dizem ser uma consequência inevitável da política de liberalização de armas de Bolsonaro: o uso criminoso do estoque de armas legais do Brasil, que tem crescido rapidamente.

Há cada vez mais evidências de que armas de grosso calibre adquiridas de forma legítima estão caindo no mercado negro.

Embora a estrutura fragmentada das forças nacionais de segurança dificulte a contagem de quantas armas desse tipo têm sido encontradas em cenas de crime, mais de uma dúzia de policiais federais e estaduais disseram à Reuters que um número crescente de armas de fogo adquiridas legalmente está sendo usado para cometer crimes em todo o país.

Muitas dessas armas de fogo têm alcançado os criminosos mais violentos do Brasil, o país com o maior número de assassinatos no mundo.

Os homens escondidos em Varginha faziam parte de uma nova leva de ladrões de bancos responsáveis por conduzir uma onda de fortes assaltos por todo o interior do país, segundo a polícia.

Conhecidos localmente como o “novo cangaço”, esses grupos especializados aterrorizam cidades, explodem cofres bancários e usam pessoas como escudos para fugir, muitas vezes levando milhões de dólares, conforme noticiou a Reuters em outra reportagem. Bolsonaro, um ex-capitão do Exército, tem facilitado a compra de armas de fogo em grande quantidade por brasileiros a partir do registro no Exército como caçadores, atiradores ou colecionadores, conhecidos como “CACs”.

Com seu incentivo, quase 700 mil brasileiros já se credenciaram como CACs, um aumento de quase 500% desde 2018.

Bolsonaro diz que essas armas estão sendo adquiridas por “cidadãos de bem”, ajudando a reduzir a taxa de homicídios, que tem apresentado uma queda constante desde antes de sua posse, de 27 por 100 mil habitantes em 2017 para 19 no ano passado. Especialistas, contudo, contestam sua teoria, alertando que há uma forte relação de longo prazo entre as mortes por armas de fogo e o número de armas de fogo em circulação.

Em julho, a Reuters noticiou que a Polícia Federal desaprovava as políticas de armamento de Bolsonaro, argumentando que tais medidas colocariam mais armas nas mãos de criminosos.

Há sinais agora de que esses temores estão se tornando realidade.

“O tempo todo surgem problemas com armas adquiridas por CACs”, disse uma autoridade sênior da Polícia Federal sob condição de anonimato devido ao teor politicamente sensível do assunto. “Lamentavelmente, teremos problemas com isso por décadas.”

O gabinete de Bolsonaro não respondeu a um pedido de comentário. A Polícia Federal direcionou as perguntas da Reuters ao Exército, responsável por conceder os alvarás aos CACs, que também não respondeu.

NEO-BANDITISMO

Derivado do termo “cangaceiros” –bandidos que vagavam pelo árido Nordeste no final do século 19–, o “novo cangaço” do Brasil tem se beneficiado das regras mais flexíveis para compra e uso de armas de Bolsonaro, de acordo com investigações policiais e entrevistas com policiais envolvidos no controle de armas e investigações do crime organizado.

Em dezembro do ano passado, um grupo vestido com uniformes policiais roubou cerca de 4,5 milhões de reais de um carro-forte na cidade de Guaíba, no sul do país. Os investigadores localizaram uma das armas utilizadas no assalto –um fuzil de assalto 7,62 mm da Imbel, de fabricação brasileira– e descobriram que ele havia sido comprado por CAC, de 36 anos, que pagou 2.000 reais para adquirir a arma em nome da quadrilha, segundo a Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul.

Em julho, a polícia da cidade de Itajaí, também no sul do país, prendeu três supostos ladrões suspeitos de roubar cerca de 230 mil reais em dois assaltos a bancos. O grupo, que de acordo com a polícia estava planejando outro assalto iminente, foi encontrado com duas pistolas, uma espingarda e dois T4s –todos adquiridos legalmente por meio de um dos membros da quadrilha registrado como CAC, disse o detetive que lidera o caso, Eduardo Ferraz, à Reuters.

De todo o armamento agora disponível aos fãs de armas do Brasil, o T4 tem se destacado como a arma preferida das quadrilhas do país.

Produzido pela fabricante de armas brasileira Taurus , o T4 chegou ao mercado nacional em 2019 como resultado direto das políticas recentes de Bolsonaro para flexibilizar as leis de armamento. A iniciativa tem sido um enorme sucesso para a empresa, que já vendeu cerca de 60 mil unidades da carabina semiautomática 5,56 mm, ajudando a impulsionar o preço de suas ações em cerca de 350% desde o início de 2019.

Antes das regras mais frouxas, um fuzil de assalto 5,56 mm importado, equivalente ao T4, custava 60 mil reais no mercado negro, segundo Ivan Marques, diretor-gerente da Rede de Ação Internacional sobre Armas Pequenas. Mas agora, disse Marques, qualquer pessoa registrada como CAC pode comprar um T4 de forma legal por 16 mil reais “com garantia de fábrica”.

Autoridades federais disseram à Reuters que as quadrilhas do Brasil –e particularmente a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), originada em São Paulo e a mais poderosa facção criminosa da América do Sul– estão usando cada vez mais proprietários de armas legalizados como compradores para reabastecer seus arsenais que, segundo um oficial, durarão “cem anos.”

Uma tática comum usada pelas quadrilhas –como visto no caso do T4 de Huijsman– é roubar armas das casas de pessoas que possuem autorização como CAC para possuir tal armamento.

Mas às vezes, segundo a polícia, o comprador legal está envolvido no esquema. No mês passado, a Polícia Civil do Estado de São Paulo disse ter prendido um portador de alvará de CAC com 700 cartuchos de 5,56 mm em seu carro. O homem confessou ter vendido ao PCC armas que ele havia alegado anteriormente terem sido roubadas.

Huijsmans disse à Reuters que é inocente e vítima de um roubo. Jackson Frederico Vale, o detetive que investiga o caso de Huijsmans, disse não suspeitar de uma relação do agricultor com o crime.

Em outros casos, membros de quadrilhas estão omitindo seus históricos criminais ao solicitar o alvará de CAC, apostando na sobrecarga de trabalho sobre o Exército para que seus pedidos sejam aceitos.

Em julho, a Polícia Federal na cidade de Uberaba, em Minas Gerais, prendeu um criminoso local conhecido por ser ligado ao PCC por não alertar os certificadores do CAC, de competência do Exército, sobre seus antecedentes criminais. O homem de 36 anos, que já havia sido acusado de assassinato, roubo e tráfico de drogas, foi encontrado com sete armas de fogo, incluindo um T4.

NOVO CANGAÇO

Situada em uma importante rota de tráfico de cocaína entre o Paraguai e os portos atlânticos brasileiros, Uberaba e outras cidades próximas em Minas Gerais provaram ser um terreno fértil para as investidas do “novo cangaço”. A rica cidade produtora de carne bovina sofreu dois grandes assaltos a bancos nos últimos cinco anos, incluindo o assalto em 2019 à sua principal agência do Banco do Brasil.

Em 31 de outubro de 2021, a Polícia Militar de Minas Gerais e a Polícia Rodoviária Federal realizaram duas investidas contra supostos assaltantes de bancos escondidos perto de Varginha, matando 26 deles. Nenhum policial ficou ferido. Esse contraste levou a acusações de execuções ilegais que agora estão sendo investigadas pela Polícia Federal.

Como justificativa, a Polícia Militar de Minas Gerais informou aos repórteres que a quadrilha estava prestes a roubar 65 milhões de reais de uma agência do Banco do Brasil em Varginha. Eles também disseram acreditar que os supostos ladrões eram da mesma equipe que havia atacado uma agência do Banco do Brasil na cidade de Araçatuba, em São Paulo, alguns meses antes, embora não tenham apresentado provas.

Muitas das 26 pessoas mortas tinham ficha criminal, que incluem acusações de assassinato, roubo e drogas, segundo os investigadores. Pelo menos quatro eram de Uberaba.

Um policial federal envolvido na investigação dos assassinatos confirmou que a quadrilha planejava um assalto. Mas de acordo com o policial, falando sob condição de anonimato diante da investigação ainda em andamento, o alvo era um veículo blindado que transportava de 20 a 30 milhões de reais.

Após as batidas, a polícia vasculhou o arsenal da quadrilha. Eles encontraram uma metralhadora .50, capaz de derrubar um helicóptero voando baixo, dois rifles de assalto 7,62 mm e cerca de uma dúzia de carabinas 5,56 mm –incluindo o T4 de Huijsmans.

Marques, especialista em armas, disse que o rifle de Huijsmans não será a última arma de fogo legalmente adquirida a surgir em uma cena de crime.

“Pode-se dizer com segurança que boa parte dessas armas que entraram em circulação nos últimos quatro anos vão acabar nas mãos do crime”, disse ele.

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