22/10/2022 - 6:00
Aberta, não monogâmica, poliamorosa. A vida conjugal não está mais restrita a dois e muitos casais têm explorado novas formas de amar sem abrir mão da parceria fixa na construção do lar e dividem o desejo do futuro compartilhado. Nas redes sociais, esses arranjos motivam debates acalorados entre defensores e opositores, enquanto quem vive isso na prática aproveita a chance para abrir a intimidade e desmistificar dúvidas comuns de quem nunca cogitou um formato diferente de relação. Mas, embora cada vez mais comuns, essas relações trazem os desafios inevitáveis, como o ciúme.
Autora do livro Open monogamy: A guide to co-cretating your ideal relationship agreement (ainda não lançado no Brasil), a terapeuta, psicóloga e sexóloga Tammy Nelson explica que relacionamentos “não monogâmicos” habitam um amplo espectro de possibilidades que vão desde os “trisais” (três na mesma relação) e o “poliamor” (mais de um parceiro fixo ao mesmo tempo, em dupla ou individual) até aqueles que frequentam juntos “festas adultas”).
“Monogamia aberta é quando você tem uma relação ‘primária’, ‘comprometida’ ou ‘essencial’ e também um acordo fluido e flexível sobre ela”, define Tammy, que relata ver tal configuração com mais frequência que algo “livre-para-todos e tenha quantos parceiros quiser”. “Existe uma ampla variedade, mas no fim do dia é o que o casal decide.”
Tammy tem algumas teorias para explicar por que esses relacionamentos se popularizaram nas últimas duas décadas. “Depois de várias gerações em que as pessoas cresceram com pais divorciados, tendo amantes, mentindo e traindo, algumas decidiram que isso não funciona para elas. E entenderam também que só porque estamos casados não significa que estamos mortos.”
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Abrir o jogo e admitir que sente atração por outros nem sempre é tarefa fácil para o casal, mas pode ao mesmo tempo trazer uma chance única de diálogo e transparência. “O mais interessante é passar por esses pontos e falar sobre eles. Não é por ser livre que vai estar bom sempre”, avalia a psicóloga e psicanalista Marcela Valle, de 27 anos.
Desde abril de 2021, Marcela está em um relacionamento não monogâmico com a líder de operação em vendas Amanda Alves, de 26 anos. O arranjo foi proposto pelas duas “desde que começou o flerte” em Belo Horizonte e ambas queriam “viver um amor livre”. “Foi sempre uma conversa trocando as questões teóricas e aprimorando. Vimos o que encaixava melhor para nós nessas teorias todas”, diz ela.
‘Atualização de contrato’
Um dos livros que ajudaram Amanda a entender melhor a questão foi o Novas Formas de Amar (Ed. Planeta, 2017), da psicanalista Regina Navarro Lins. Ao Estadão, a autora diz que “não tem a menor dúvida de que relacionamentos não monogâmicos estão crescendo no Brasil e no Ocidente”. Esse movimento, acrescenta, coincide com a “saída de cena do amor romântico”.
“A questão é que ninguém combina nada quando começa uma relação. A monogamia é um imperativo na nossa cultura”, avalia a psicanalista. “Quando um casal começa a namorar, já está implícito que um só pode ter relações sexuais com o outro, que é impossível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Os dois acreditam que vão se transformar em um só, que um terá todas as necessidades atendidas pelo outro, que quem ama não se relaciona com mais ninguém”, explica.
O ideal de amor romântico começou nos idos do século 17, mas só se tornou uma possibilidade nos casamentos mais de 200 anos depois, passada a Revolução Industrial, e quando o matrimônio deixou de ser uma configuração arranjada por famílias e dotes. Nas décadas seguintes, filmes de Hollywood, contos de fadas, poesia e literatura povoaram o imaginário do final feliz após o “sim” e das metades da laranja que se encontram.
Esse contrato de casamento, porém, já passou por importantes “viradas de chave” desde então. Foi-se o tempo, por exemplo, em que o divórcio, só aprovado no Brasil em 1977 por um Emenda Constitucional, podia levar à perda de emprego e dava à mulher a pecha de “desquitada”.
Outros marcos são a invenção da pílula anticoncepcional e os avanços dos movimentos feminista e LGBT+, nos anos 1960, assim como figuras disruptivas que ajudavam a jogar luz sobre tabus sexuais e comportamentais de suas épocas. “Os anseios contemporâneos são em busca da individualidade. Cada um quer saber seu potencial de desenvolver possibilidades na vida, o que não tem nada a ver com egoísmo. Isso bate de frente com a proposta do amor romântico, que é a não individualidade.”
Liberdade feminina
Foi essa busca e autorreflexão sobre si mesma que impulsionaram a atriz Fernanda Nobre, de 39 anos, a falar abertamente sobre o “pacto” que fez com o companheiro, o diretor e produtor José Roberto Jardim, de 45, com quem está há dez anos. Era 12 de junho de 2020, Dia dos Namorados em meio ao isolamento da pandemia, quando ela contou para seus milhares de seguidores nas redes sociais que eles viviam um relacionamento não monogâmico.
“Comecei a me ver nesse lugar de reconhecer que eu reproduzia o machismo sem ter consciência e de identificar na minha vida onde eu não estava escolhendo, mas apenas correspondendo às expectativas da sociedade de forma compulsória”, conta ao Estadão.
Fernanda, que diz ter sido criada por “pais de cabeça aberta”, começou a se aprofundar em estudos sobre antropologia, sociologia e feminismo, movimento do qual se reconhece como “pesquisadora” para entender questões que a incomodavam. “A forma como nos comportamos, o valor à beleza e à maternidade, como nos relacionamos, o amor romântico são algumas dessas questões. Entendi o quanto a monogamia foi determinada para nos controlar, nosso corpo, sexualidade, e o quanto ela é hipócrita em relacionamentos heterossexuais”, avalia.
Para a atriz, o “relacionamento aberto é mais um posicionamento político de consciência do que representa a monogamia para a mulher”. “Passei minha vida adulta toda sem pensar que existia outra possibilidade de relação. Meu companheiro e amor é uma escolha diária de parceria. Estamos em busca de uma relação diferente e mais honesta. Queremos criar nosso próprio modelo, não repetir nada de ninguém.”
Desde que começou a falar publicamente sobre o tema, Fernanda conta ter recebido inúmeras mensagens de mulheres e homens com dúvidas. Outras artistas e personalidades, como Anitta, Samara Felippo e Bela Gil, também ajudaram a trazer o tema à tona, com transparência e sem tabus sobre os desejos que sentem e as possibilidades de se relacionarem com mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
“Lealdade não tem nada a ver com traição”, disse Anitta à revista Vogue, em maio deste ano. “Lealdade tem a ver com consideração, com empatia, com você fazer a pessoa se sentir bem, com respeitar aquela pessoa, não ser abusivo. Se a pessoa fizer com que eu me sinta assim, eu não ‘tô’ nem aí se ela transou com outra”, emendou a cantora pop, que também já se assumiu como bissexual.
Na história do Brasil, são poucas as mulheres com uma “vida pública” que tiveram a coragem de declarar a própria liberdade sexual tão abertamente. Mas elas existiram, e a função foi exercida com peito aberto e barriga de fora por nomes como a atriz Leila Diniz. “Ela já fazia há 50 anos tudo o que estamos discutindo hoje”, explica a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de livros como Toda mulher é meio Leila Diniz (Ed. Best Seller, 2008) e Por que homens e mulheres traem? (2011).
“Há quase um cardápio de escolhas muito maior, como casas separadas, relacionamentos abertos, transar antes do casamento (o que não era possível antes)”, aponta Mirian. “A grande diferença é que a mulher tem muito mais escolhas, apesar de ainda serem menos que as dos homens. Quando tem independência financeira e psicológica, escolhe a relação que quer e um pacto do que quer ou não na relação.”
Para casais heterossexuais, ela observa, apenas a possibilidade de a mulher não se ver mais obrigada a um “relacionamento mais tradicional, que era quase uma prisão,” contribuiu para o cenário atual. “Se uma mulher falasse (que tinha múltiplos parceiros) antigamente, era assassinada.”
Mas, para Mirian, os adeptos da não monogamia ainda se restringem a uma bolha mais jovem e escolarizada, vivendo principalmente em grandes centros urbanos. “Mesmo que as pessoas possam escolher novos modelos, vejo muitos escolhendo o monogâmico tradicional ainda”, reforça. “Claro, a isso não significa cumprir a cartilha tradicional à risca. Não quer dizer que cumpram isso.”
Encontros, ciúmes e ‘compersão’
Aplicativos e sites de encontro específicos para esse nicho cresceram timidamente nos últimos anos, impulsionados pela falta de “match” nos mais tradicionais. O site Sexlog, dedicado a casais adeptos do “suingue”, foi lançado em 2010 e se define como “uma comunidade com mais de 17 milhões de pessoas que buscam viver o prazer, sem julgamento”. Já o app Ysos, dos mesmos donos, oferece “encontros de casais para pessoas reais e relacionamentos liberais”.
Entre os usuários do Ashley Madison, portal que conecta dispostos a viverem casos extraconjugais, 52% acreditam que “a sociedade pode se beneficiar ao avançar para um estilo mais aberto de monogamia/não monogamia”. Dentre as mulheres que usam o portal, 65% afirmam não acreditar mais na monogamia.
O casal Giovana Rodrigues, estudante de 22 anos, e Luís Moreira, assessor de 31 anos, utilizam o Sexlog e o Ysos para encontrarem parceiros fora do relacionamento. Juntos há seis anos, eles moram no Rio e contam que a relação é aberta desde o início. Mas o hábito antes restrito a festas esporádicas com iniciativas dos dois juntos é, agora, um novo combinado. Cada um também tem espaço para explorar seus interesses de forma separada.
“As pessoas ‘não mono’ entendem que podem ter sentimentos por outras pessoas, mas ainda assim te olham como objeto sexual, muito mais no caso dela”, conta Luís. “Já as meninas me dispensam por não ter chance de nada ‘sério'”, complementa ela.
Ambos se identificam como bissexuais e administram juntos a conta “Soluções não-monogâmicas” no Instagram para desabafar, encenar e rir de situações comuns a casais “abertos”. Mas antes do combinado atual, admitem, foi preciso uma série de testes e conversas até calibrarem o que funcionava para a segurança e conforto de ambos.
“Tentamos entender como isso era possível porque nós mesmos não acreditávamos que pudesse funcionar. Gostávamos um do outro, mas sentíamos vontade de ficar com outros também”, explica Giovana. “A única coisa que fazemos é combinar de os dois saírem (com outra pessoa) no mesmo dia. É o máximo de ‘regra’, mas não é obrigatório. Se der, tudo bem”, diz ela. “Se entendemos que tem problema ou que o outro está inseguro, paramos e conversamos. Tem de respeitar o tempo do outro”, ele aponta.
O tempo da estudante, conta Giovana, nem sempre está sincronizado com os ponteiros do parceiro. Para ambos, o ciúme precisou ser trabalhado em conjunto e nem por isso deixa de dar as caras de vez em quando, mesmo que eles ainda não estejam abertos a criar vínculos afetivos com outros. “Tem dias que você vai morrer de ciúme, dias que não, mas precisa aprender a lidar.”
O combinado entre Amanda e Marcela já permite a fluidez não só de desejos, mas de laços emocionais e afetivos, desde que a cláusula máxima de “comunicação como prioridade” seja respeitada. A psicóloga conta que às vezes convive com outras pessoas que a parceira está se envolvendo simultaneamente. “Essas situações nos dão a oportunidade de investigar coisas que são só minhas ou dela e são escancaradas numa relação afetiva”, afirma Amanda.
Mesmo que natural em certa medida, o ciúme excessivo pode ser um sinal de alerta para algo que precisa ser melhor analisado na relação ou na própria pessoa que nutre esse sentimento. Ao mesmo tempo, sua total ausência também pode indicar algo mais profundo.
“As pessoas que nunca sentem o ciúme talvez evitem propositalmente o envolvimento com alguém ou realmente gostam de ver o parceiro com outro”, explica Tammy Nelson. Essa “satisfação” por tabela ganhou um nome cunhado em São Francisco (EUA), que no Brasil chegou como “compersão”. “Na prática significa: ‘me sinto bem de te ver feliz, mesmo que com outro’.”
Liberdade de escolha
Independentemente do tipo de relacionamento, os princípios fundamentais para toda e qualquer relação saudável e duradoura são os mesmos, afirmam os especialistas: transparência, honestidade e (muito) diálogo. Diz o ditado que “o combinado não sai caro”, mas às vezes até os acordos pré-acertados podem causar desconforto quando postos em prática.
“Estamos vivendo uma transição entre antigos e novos valores, então não temos parâmetros para nos apoiar. Nos modelos tradicionais, sabemos dizer o que não funciona: possessividade, ciúme, descontrole e desrespeito à individualidade do outro”, avalia Regina Navarro Lins. “Não consigo ver melhor forma do que total franqueza. Cada casal decide (as regras) e, mesmo assim, encontramos conflitos porque uma das partes diz o que deseja e depois, na prática, se arrepende. Aí tem que conversar de novo.”