05/09/2014 - 20:00
Seria cômico se não fosse trágico: a retração da economia brasileira ao longo de 2014 teve um lado positivo. Não fosse o recuo do PIB de 0,2% no primeiro trimestre e de 0,6% no segundo trimestre, muito provavelmente o País teria sofrido um apagão duradouro de energia elétrica. “O governo mediu o risco de racionamento e entendeu que era aceitável”, afirma Elbia Melo, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica. Economista com doutorado em engenharia de produção, Elbia foi coordenadora de política institucional do Ministério da Fazenda, entre 2002 e 2003, e economista-chefe do Ministério de Minas e Energia até 2006, comandado à época pela presidenta Dilma Rousseff. Sobre energia eólica, que está no centro do debate eleitoral, ela diz que está ganhando peso na matriz elétrica. Em três anos, sua participação saiu de menos de 1% para 5% e caminha para chegar a 10% em 2020.
DINHEIRO – O Brasil correu risco de falta de energia neste ano?
ELBIA MELO – Foi um risco razoável, segundo o governo. Significou que o sistema abriu mão de alguma segurança, em termos técnicos. Mas, efetivamente, quando se olha para tudo o que foi feito, com o uso das térmicas, o risco econômico e sistêmico foi mais alto. O que significa que do ponto de vista qualitativo nós tivemos um racionamento no Brasil, que não foi aplicado. Tivemos porque, quando se utilizam as usinas térmicas com custo de R$ 1,3 mil o megawatt/hora, o sistema está operando no limite dos reservatórios.
DINHEIRO – Esses riscos não existem mais?
ELBIA – Eles estão mais controlados. Abril era um mês crucial para sabermos o tamanho do risco. Quando chegou o final desse período úmido, tivemos as simulações que indicaram como será o próximo, em meados de outubro. Segundo relatório do governo, não vamos ter corte de energia. O Brasil nunca passou por racionamento.
DINHEIRO – Nem no período final do governo Fernando Henrique Cardoso?
ELBIA – Não, aquilo foi um programa de redução de consumo, que foi feito para não se chegar ao racionamento. Chegou próximo ao racionamento, mas o programa emergencial de redução de consumo, em 2001 e 2002, foi extremamente eficiente. Neste ano, entendo que chegamos a esse ponto. Mas o governo mediu o risco de racionamento e entendeu que era aceitável para operar o sistema.
DINHEIRO – O baixo crescimento contribuiu para o País evitar essa situação?
ELBIA – Contribuiu absurdamente. Nós não precisamos chegar a um programa de redução de consumo ou até a um racionamento devido ao efeito pibinho, o que é um contrassenso. Graças a Deus, não crescemos, é isso. No Brasil, sempre trabalhamos com um crescimento razoável do PIB de 4% ao ano e um aumento de consumo de energia de 6%, aproximadamente. Se fosse assim, não teria jeito, chegaríamos a um programa de redução de consumo e, talvez, ao racionamento. Estamos operando o sistema no limite, e isso vai continuar até dezembro. Em outubro começa o período úmido, mas ainda não se sabe o que vai acontecer.
DINHEIRO – O governo do Estado de São Paulo diz que será bom…
ELBIA – A previsão do tempo está ficando cada vez mais complexa. Um relatório do Painel do Clima revela que a chuva mudou no tempo e no espaço. Ou seja, pode até ser que chova, mas não vai ser no mês que se espera nem no local dos reservatórios. Pode estar chovendo, mas não onde o governador Geraldo Alckmin ou a presidenta Dilma precisam para encher os reservatórios. Por isso, temos de melhorar a nossa matriz.
DINHEiRO – A matriz elétrica foi bem escolhida?
ELBIA – Olhando para o passado, com as variáveis que temos hoje, podemos dizer que não. Mas lá atrás, quando a decisão foi tomada, parecia que sim. Qual é o ponto central? Em 2004, quando foi publicado o marco do setor elétrico, veio uma diretriz muito clara de que priorizaríamos as hidrelétricas. É óbvio e natural. É um recurso abundante e mais competitivo. Mas estava claro que iríamos colocar mais térmicas no sistema, para não repetirmos o que aconteceu em 2001 e 2002. Na cabeça do policy maker, só existia termelétrica e hidrelétrica por uma razão simples: a energia eólica custava quase seis vezes a hídrica; a solar, 15 vezes mais. Olhando para trás, vemos que deveríamos ter feito um ajuste, que não foi feito.
DINHEIRO – Por que não foi feito o ajuste?
ELBIA – Passamos muito tempo sem ter planejamento energético. A Empresa de Planejamento Energético, a EPE, foi criada em 2004. Não tínhamos estudo de hidrelétricas. Para se ter uma ideia, o primeiro leilão de energia nova, que aconteceu em 2005, não tinha hidrelétrica para leiloar, porque não havia estudo de viabilidade. O Brasil parou de planejar, de 1999 até 2005. Não tivemos outra alternativa a não ser contratar usinas térmicas, num modelo de disponibilidade, no qual se paga um aluguel fixo e, se for preciso utilizar essa energia, paga-se um custo variável. Contratamos as térmicas apostando que não iríamos usá-las.
DINHEIRO – Mas havia outra opção viável naquele momento?
ELBIA – Em 2008, já havia a energia eólica a preços menores. Não era altamente competitiva, mas, se trouxermos a preços de hoje, talvez em 2008 tivéssemos contratado a R$ 200 o megawatt/hora, mais ou menos o dobro do preço atual. Considerando que estamos usando térmicas a R$ 1,3 mil, teria sido razoável ter pago alguma coisa mais cara pela eólica. O que falta é pensar numa matriz de longo prazo, que otimize as três variáveis: segurança, competitividade e baixa emissão de poluentes. O Brasil tem energia renovável abundante.
DINHEIRO – Edison Lobão é um nome certo no Ministério?
ELBIA – Ele é um político, mas é um político de muita competência, com boa articulação, que fala muito bem e ouve muito bem. Está lá como um ministro, mas no papel de articulador. Agora, o que importa muito no Lobão é a equipe dele, que é técnica. O problema não está nas pessoas, mas no modelo de se perseguir apenas a variável preço em detrimento da segurança de longo prazo e dos aspectos ambientais
DINHEIRO – Mas é importante ter uma energia barata, não?
ELBIA – O principal mecanismo de ajuste no modelo do setor deveria ter sido pelo lado da demanda, ou seja, a situação do consumidor. O Brasil sempre expandiu o setor elétrico de forma paternalista. Aliás, esse e todos os outros setores. A mensagem é: “Consumidor, durma tranquilo que eu garanto o recurso. Eu garanto e é barato”. É por isso que a senhorinha lava a calçada todo dia com mangueira. Não há no País uma consciência do cidadão, de que energia depende de hidrelétrica, tem sazonalidade e depende do humor de São Pedro. A Dilma tinha credibilidade para fazer esse alerta, em janeiro de 2014, em rede nacional, e o cidadão ia entender que a culpa não era dela, que era preciso rezar para São Pedro e, enquanto isso, reduzir o consumo.
DINHEIRO – O único sinal foi a redução do preço.
ELBIA – O consumidor tem de saber quanto custa a energia. Em 2012, a Dilma deu 20% de redução na conta de luz. Com isso, é natural que o consumo aumente. Na sequência, veio o período úmido, que foi seco, e toda a desgraceira aconteceu. Poderia ter dado muito certo o que a Dilma fez, se tivesse chovido o suficiente, mas não choveu.
DINHEIRO – A conta de luz deveria ter aumentado junto com o uso das termelétricas?
ELBIA – O consumidor não está vendo a alta do preço agora. Ele olha a conta de luz e ela continua igual. Esse é o problema, porque o Brasil não segue o modelo pelo lado da demanda, e o consumidor tem de saber quanto custa a luz na hora em que ela está sendo consumida. Um ano depois, ele já esqueceu.
DINHEIRO – Algum país do mundo tem alguma experiência que valha a pena ser observada?
ELBIA – Os países nórdicos são o melhor exemplo. A Noruega fez com a Dinamarca e com a Suécia o Polo do Norte, pelo qual eles trocam entre si a energia gerada. Estive em Estocolmo e vi como funciona o sistema nas residências: o consumidor recebe diariamente a informação de que hora pode ligar a máquina de lavar ou a geladeira, para saber se a energia está mais cara ou mais barata. Há todo um controle. O Canadá tem uma lógica igual.
DINHEIRO – Nosso sistema elétrico está envelhecido?
ELBIA – Quando falamos em sistema elétrico, falamos de usinas geradoras e de transmissoras. Em termos de geradoras, elas têm uma idade de 30 anos, que é o prazo de concessão. E, então, falar em retrofit de geração, repotenciação, parece algo razoável, que pode dar algum ganho. Mas em termos de transmissão, sim, está envelhecido. Nesses apagões que aconteceram com certa frequência, grande parte da explicação é de que o sistema está envelhecido, e não houve investimento suficiente.
DINHEIRO – Qual é o potencial da energia eólica para o Brasil?
ELBIA – Com as novas tecnologias, o potencial chega a 350 gigawatt. Hoje, a matriz brasileira tem 126 GW com eólica, hidrelétrica, térmica e outras. Então, só de eólica é mais de três vezes o que o País precisa. E esse potencial é virtuoso porque a eólica é uma energia competitiva por definição, com disponibilidade infinita, limpa e renovável.
DINHEIRO – Se não fosse a transmissão, a geração eólica podia ter contribuído antes com o sistema?
ELBIA – Isso está começando a ser parte do passado. Os parques no Rio Grande do Norte e na Bahia, que foram leiloados em dezembro de 2009, deveriam entrar em operação em 2011. Mas o leilão da transmissão aconteceu em 2010. Foi um erro de cálculo e de planejamento para as linhas de transmissão. Agora, isso não é só no Brasil. A China tem 30% do parque dela sem funcionar porque não tem linha de transmissão. É da natureza do negócio, que exige um certo aprendizado. Não podemos chamar só de incompetência.
DINHEIRO – A sra. não tem receio de que a energia eólica seja vista como uma solução para os males do País, quando ela é uma parcela complementar?
ELBIA – Não, não tenho receio algum. Se você olhar para uma matriz hoje, não existe mais base de matriz, todo mundo é complementar. Acabou essa história porque não há mais reservatório. A hidrelétrica, hoje com participação em torno de 67% na capacidade instalada, é a mais forte. Mas, à medida que o tempo vai passando, todo mundo vai se tornando complementar. E essa é a matriz perfeita, entender que todo mundo é complementar e não concorrente entre si.