26/01/2023 - 9:12
Os ataques às sedes dos tês Poderes, em Brasília, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no último dia 8 de janeiro, marcaram uma mudança nas relações entre o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os comandos militares e levantaram a questão de se ocorrerá uma despolitização das Forças Armadas.
Diante de indícios de omissão e conivência de parte das forças de segurança responsáveis pelos edifícios destruídos pela turba de manifestantes golpistas, o chefe do Executivo tomou medidas para tentar reduzir o poder dos generais ligados a Bolsonaro no governo federal.
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Na mais contundente delas, Lula trocou o comando do Exército, no último dia 21, substituindo o general Júlio César de Arruda pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva. O novo comandante, que chefiava o Comando Militar do Sudeste, havia proferido um discurso legalista para os comandados, poucos dias antes da troca, defendendo o respeito às urnas.
A troca é vista como uma tentativa de o novo governo dar cabo a um processo de influência política das Forças Armadas iniciado durante o governo da também petista Dilma Rousseff (2011-2016), após a instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
“A construção do domínio civil sobre os militares se manteve do governo Fernando Collor até o governo Lula, mas começou a cair durante o governo Dilma, porque os militares se sublevaram, viram uma fraqueza nos civis, e ninguém os puniu”, aponta o cientista político André Anselmo, da Universidade de Syracuse, nos EUA, citando a investigação dos crimes cometidos durante a ditadura pela CNV como um dos principais motivos para essa reação de integrantes das Forças Armadas.
“Quando o general [Eduardo] Villas Bôas chegou ao comando do Exército [durante o governo Dilma], começou uma campanha aberta para que os comandantes tivessem perfil em redes sociais e postassem proficuamente. A grande maioria deles fazia postagens com platitudes, como treinamentos dentro dos quartéis. Mas vários deles perceberam uma audiência e começaram a falar de política”, acrescenta Anselmo.
Essa politização das Forças Armadas, que foi intensificada com a recriação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) durante o governo Temer, chegou ao ápice durante o mandato do capitão da reserva Bolsonaro, cujos discursos antidemocráticos são apontados como responsáveis por inflamar os atos golpistas de 8 de janeiro.
Janela de oportunidade
Para cientistas políticos ouvidos pela DW, o momento é de oportunidade para o atual governo petista diminuir a influência dos militares na administração federal. Segundo eles, o ideal seriam alterações efetivas na legislação brasileira para restringir a politização das Forças Armadas – o que, porém, tanto pelo possível desgaste político quanto pela própria agenda do Partido dos Trabalhadores é pouco provável de acontecer.
“No momento, há uma ‘janela de oportunidade’ para que sejam corrigidos alguns aspectos problemáticos – como a forte presença militar no governo e a visível desobediência do comando do Exército”, afirma Christoph Harig, especialista em segurança, militarismo e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Técnica de Braunschweig, na Alemanha.
Harig classifica as medidas adotadas por Lula após os atos em Brasília como “corretas” e “importantes”. Além da troca no comando do Exército, o novo governo dispensou dezenas de militares ligados à Presidência, incluindo integrantes do GSI.
Para o especialista, no entanto, é necessário que o país imponha reformas no sistema de formação dos cadetes, uma quarentena para oficiais que queiram ingressar na política ou até mesmo uma mudança do artigo 142 da Constituição (sobre o papel das Forças Armadas) para frear a compreensão dos militares de serem uma espécie de “poder moderador”.
“Mas não acredito que isso seja possível. Até mesmo sob o novo comandante, há para os militares uma espécie de ‘linha vermelha’ que não deve ser ultrapassada pelo governo: como, principalmente, a anistia para os crimes cometidos durante a ditadura”, explica o pesquisador.
A própria punição de generais eventualmente envolvidos nos ataques de 8 de janeiro será evitada pelo comando atual, avalia Harig. Além de membros das corporações em Brasília, o Exército também não atendeu às ordens da Polícia Militar do Distrito Federal para desmontar acampamentos golpistas que estavam em uma zona de jurisdição das Forças Armadas.
Investimento na Defesa
Logo após a vitória nas eleições de 2022, Lula já buscou uma forma de apaziguar as tensões com os militares, que gozavam de prestígio e forte presença na máquina estatal durante a gestão de Bolsonaro. Como primeira medida, o petista indicou José Múcio Monteiro para o Ministério da Defesa, um civil de perfil conciliador e com bom trânsito entre os generais. No entanto, Múcio não foi capaz de conter a desordem do 8 de Janeiro, tendo chamado os acampamentos golpistas de “movimentos democráticos” e minimizado a responsabilidade do comando militar nos atos de vandalismo em Brasília.
Para Anselmo, no entanto, o atual presidente tem agido na direção certa ao retirar os militares de cargos da administração pública federal e tentar diminuir o papel dos generais nas discussões políticas. “Lula já tinha esse desejo, e o dia 8 de janeiro só deu mais força para ele fazer isso, tendo apoio de grande parte do establishment político que talvez não o apoiasse se não houvesse essa baderna que virou a destruição dos prédios em Brasília”, afirma.
Segundo o cientista político, a promessa do atual presidente de investir na indústria militar, feita em uma reunião com os comandantes das três forças antes da troca do comando no Exército, pode ser uma carta na manga. Para ele, apesar das diferenças ideológicas, a política desenvolvimentista é um ponto de contato entre Lula e os militares.
“Esse pode ser um ponto importante para Lula, de apaziguamento, se ele retomar os investimentos que fez, durante os primeiros governos dele (2003-2010) na Defesa. A Dilma cortou isso, com o Bolsonaro deixou de existir. O Lula foi o único que investiu em submarino militar, em caças. Isso pode servir como moeda de troca”, diz Anselmo.
Cultura política e privilégios das Forças Armadas
Um possível “recuo” dos militares nas decisões políticas, no entanto, não deve significar uma despolitização total dos militares. Para Paulo Henrique Cassimiro, professor de Ciências Políticas da UERJ, o que ocorreu foi que a opinião pública negativa com os eventos do 8 de Janeiro e a omissão dos militares com os atos gerou um clima negativo para as Forças Armadas.
“O que a gente vai ver é o recuo daqueles membros que vocalizavam posições políticas muito manifestas. Mas acho que isso não vai significar uma mudança na cultura política das Forças Armadas, o que 30 anos de democratização não mudaram”, acrescenta Cassimiro, que acredita que as medidas tomadas pelo governo Lula podem aumentar o ressentimento dos militares com o PT, mas que isso não deve ser traduzido em alguma ação, como um golpe militar.
Harig acredita que os militares vão “se arranjar” com o novo governo. “Isso inclui também evitar conflitos abertos, para evitar oferecer oportunidades de serem atacados e para que eles continuem mantendo os vários privilégios”, diz.
Mudança no artigo 142 da Constituição
Os três especialistas ouvidos pela DW concordam que uma mudança no artigo 142 da Constituição Federal é uma das medidas mais urgentes para se evitar a continuidade de novas aventuras militares na política.
O texto diz: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
O artigo, segundo Anselmo, é usado por juristas “desonestos intelectualmente” para afirmar que as Forças Armadas poderiam agir em eventuais conflitos entre Poderes. “O ideal na reforma do 142 seria reformar toda a seção de defesa da Constituição pra deixar claro que as Forças Armadas não atuam em questões internas”, considera.
Porém, o cientista político afirma que a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) neste momento é muito difícil de acontecer, principalmente diante de outras discussões que têm prioridade maior na agenda do governo Lula – como as reformas tributária e fiscal, por exemplo, que precisam de grande poder de barganha com o Congresso.
“O Lula é muito habilidoso na conciliação e no apaziguamento, e provavelmente o governo dele vai apostar numa postura de controlar os militares institucionalmente, sem fazer uma PEC. A menos que a economia deslanche de vez, o governo seja muito bem-sucedido e tenha força para mexer nisso”, analisa.
“Despolitização não vai acontecer de uma hora para outra”
Outras questões, como a quarentena para militares assumirem funções administrativas, por exemplo, também devem ter pouco espaço. Como explica Cassimiro, da UERJ, o próprio caráter do Congresso atual, com a presença de um forte lobby político na presença de militares oriundos do governo Bolsonaro, como os generais Eduardo Pazuello (ex-ministro da Saúde e agora deputado federal) e Hamilton Mourão (ex-vice-presidente e atual senador), é um obstáculo.
“O governo Lula não pode se dar ao luxo de queimar capital com o papel das Forças Armadas, porque existe uma série de questões econômicas muito mais urgentes”, explica.
Para ele, o sucesso da agenda econômica do governo Lula é essencial até mesmo para impedir que uma articulação militar ligada à direita possa eleger um candidato de oposição em 2026.
“Se o governo Lula não der respostas de médio prazo, vai comprometer a manutenção da frente democrática no poder em 2026. Essa despolitização não vai acontecer de uma hora para outra. Acreditou-se que eles estavam adequados ao critério democrático, e a verdade é que descobrimos que não. Não vai ser uma canetada que vai mudar isso”, conclui.