16/06/2023 - 17:00
A cirurgia de três horas do papa Francisco na semana passada trouxe uma pergunta sobre o que acontece com o poder papal quando o papa está inconsciente ou incapacitado de alguma forma, e não consegue comandar a Igreja Católica.
A resposta: nada.
Embora muitos países tenham regras sobre a transferência de poder quando um chefe de Estado fica incapacitado, e o Vaticano tenha normas de governança para quando um papa renuncia ou morre, nenhuma dessas regulações se aplica a um papa doente, inconsciente ou hospitalizado.
Em outras palavras, o papa Francisco ainda era papa, inteiramente responsável pela administração do Vaticano e pelos 1,3 bilhão de fiéis da Igreja Católica, mesmo sob anestesia geral e enfrentando uma cirurgia para correção de uma hérnia na parede abdominal. O Vaticano informou que não houve complicações e que ele ficaria internado por alguns dias.
Não, o camerlengo do Vaticano, ou camareiro, não assumiu. Não, o nº 2 do Vaticano não interveio.
“Um breve período de impedimento não cria nenhum problema”, diz Geraldina Boni, professora de direito canônico na Universidade de Bolonha e consultora do departamento jurídico do Vaticano. “O sistema curial continua normalmente com a administração comum.”
A saber: o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, esteve na quarta-feira presidindo a inauguração de um centro de informações para os peregrinos que irão a Roma para o Jubileu de 2025. Logo após a internação do papa no hospital, foi publicado o boletim diário do meio-dia do Vaticano, com os novos bispos nomeados por Francisco.
“O papa continua agindo, mesmo do hospital”, diz o Pe. Filippo Di Giacomo, especialista e comentarista canônico. “Mesmo enquanto enfrenta momentos dolorosos como esse, seu poder atua nas pessoas que receberam dele poder indireto.”
O direito canônico tem disposições para quando um bispo adoece e não pode comandar sua diocese, mas não tem o mesmo para um papa. O cânone 412 diz que uma diocese pode ser declarada “impedida” quando seu bispo não possa, por motivo de “prisão, confinamento, exílio ou incapacidade”, exercer suas funções pastorais. Nesses casos, o dia-a-dia da gestão da diocese é transferido para um bispo auxiliar, um vigário geral, ou alguma outra autoridade.
Embora Francisco seja o bispo de Roma, não existe disposição expressa para o papa caso ele se torne “impedido” de forma semelhante. O cânone 335 declara simplesmente que, quando a Santa Sé esteja “vacante ou completamente impedida”, nada seja modificado no regime da igreja. Mas o dispositivo nada diz sobre o que significa estar “completamente impedida”, ou quais disposições podem ser aplicadas se ela estiver.
Recentemente, uma equipe de advogados canônicos decidiu propor normas para preencher essa lacuna legislativa. Eles criaram uma iniciativa canônica de crowdsourcing em 2021 para elaborar uma nova lei da igreja que regule a posição de papa aposentado, assim como as normas que se aplicam quando um papa não possa governar, temporária ou permanentemente.
“Caso a condição de um papa totalmente incapacitado se prolongue por meses, ou até anos, é claro que isso causa um grande prejuízo para a igreja e para o bem de suas almas”, diz Boni, que é uma das organizadoras da iniciativa. “Precisamos de normas que identifiquem as pessoas ou os órgãos que lidarão com os problemas que não podem ser postergados a longo prazo.”
A proposta normativa de oito páginas explica que, com os avanços da medicina, é totalmente possível que em algum momento um papa esteja vivo, mas incapaz de governar. Ela defende que a igreja precisa providenciar para que haja uma declaração de “sé totalmente impedida”, acompanhada da transferência de poder, pelo bem de sua própria unidade.
De acordo com as normas propostas, o controle da igreja universal passaria para o Colégio dos Cardeais. Em caso de impedimento temporário, eles nomeariam uma comissão de governo, com avaliações médicas periódicas a cada seis meses para determinar a situação do papa.
“Se, com todas as garantias e procedimentos definidos, for verificado que a Sé Romana está impedida por uma incapacidade determinada, permanente e incurável de um papa, é necessário proceder à eleição de seu sucessor”, disse Boni, por e-mail.
Não há indicativo de que Francisco esteja avançando nas propostas, que buscam preencher uma lacuna legislativa como se deu nos EUA com a 25ª Emenda Constitucional: supervisionar a transferência de poder caso um presidente morra ou fique incapacitado.
Francisco revelou recentemente, porém, que já escreveu uma carta de renúncia caso venha a ficar incapacitado por razões médicas. Em uma entrevista em dezembro para o jornal espanhol ABC, Francisco disse que havia entregado a carta ao então secretário de Estado no início de seu papado, mas não sabia o que havia sido feito dela.
Por enquanto, a menos que a carta preencha os requisitos legais, o poder papal só mudaria de mãos caso ele morra ou renuncie. Nessa situação, uma série de ritos e rituais entra em cena para reger o “interregno”, o período entre o fim de um pontificado e a eleição de um novo papa.
Durante esse período, conhecido como “sede vacante”, ou “Sé vacante”, o camerlengo assume a administração e a gestão financeira da Santa Sé. O cargo é atualmente ocupado pelo cardeal Kevin Farrell, prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida. Mas ele não tem função, nem responsabilidades, caso o papa esteja apenas doente ou incapacitado de alguma forma.
Em 1965, o papa Paulo VI escreveu cartas ao decano do Colégio dos Cardeais apresentando a hipótese de que, caso ele ficasse gravemente doente, o decano e os demais cardeais aceitassem sua renúncia.
Em uma carta, publicada em 2018, Paulo menciona uma enfermidade “que se presuma incurável ou de longa duração, e que nos impeça de exercer suficientemente as funções de nosso ministério apostólico”.
A carta nunca foi invocada, já que Paulo viveu mais 13 anos e morreu na função.
Os especialistas, porém, dizem que é improvável que a carta de Paulo jamais fosse usada, uma vez que a atual legislação canônica exige que uma renúncia papal seja “livremente e devidamente manifestada”, como foi o caso quando o papa Bento XVI anunciou sua renúncia em 2013.
Boni destacou as falhas na carta de Paulo, e disse que espera que o conjunto de instruções de Francisco as tenha levado em consideração.
“Só espero que Francisco tenha procurado a colaboração de especialistas canônicos”, diz.