23/08/2023 - 13:22
Na Amazônia, anos sob efeito do El Niño significam meses de seca, mais incêndios florestais, destruição da mata e maiores índices de emissões de dióxido de carbono (CO2). Foi assim no biênio 2015 e 2016, com sucessivos recordes negativos. Foi assim também em 2019 e 2020. Nesse último período, no entanto, o fenômeno climático já não afetava o bioma. O que permitia que os registros de fogo, desmatamento e emissões disparassem enquanto a floresta vinha abaixo era o desmonte das políticas ambientais nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), aponta pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), publicada nesta quarta-feira, 23, na revista Nature.
À época dos fatos, o Ministério do Meio Ambiente havia sido entregue ao hoje deputado federal Ricardo Salles (PL), órgãos como o Ibama e a Funai começaram a ser desmontados e em pouco tempo Bolsonaro e o Brasil se transformaram em párias mundiais em questões ambientais. Essa análise é corroborada pelos mais diversos estudos, dados e parâmetros produzidos nos últimos anos. A pesquisa do órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia faz agora um retrato do que esse período significou em termos de emissões de CO2 na região amazônica, que se aproxima de forma perigosa do chamado “ponto de não retorno”.
Em 2015 e 2016, as emissões amazônicas atingiram seus pontos mais altos na década. Foram liberados 1,9 bilhão de toneladas de CO2 e 2,2 bilhões de toneladas de CO2, respectivamente. O El Niño é um fenômeno natural em que o aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial causa repercussões climáticas em todo o mundo.
Naqueles anos, a floresta esteve sob a influência de um fenômeno tão forte que foi apelidado por pesquisadores de “El Niño Godzilla”, em alusão à destruição que poderia causar. E, de fato, causou.
Ainda que não tenha superado o de 1997 e 1998 na escala de problemas, foi o suficiente para, por exemplo, fortalecer a epidemia de Zika na América do Sul e, na floresta tropical, desencadear condições perfeitas para enormes incêndios, como os registrados na porção norte do bioma, e levar seca tão severa capaz de secar quase inteiramente o lago da Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, o que causou desabastecimento e insegurança alimentar às comunidades ribeirinhas.
Não se esperava, ao menos tão cedo, que índices como os daqueles anos fossem repetidos ou que chegássemos tão perto. Pois, em 2019 e 2020, a região amazônica emitiu 1,6 bilhão de toneladas de CO2 e 1,9 bilhão de toneladas de CO2, respectivamente. Na comparação com os anos do Godzilla, 0,6 bilhão a menos foi emitido.
“Temos que fazer mais do que o combate ao desmatamento, temos que reflorestar as áreas perdidas e ter um monitoramento como a OMM (Organização Meteorológica Mundial) está convocando os países a fazer”, diz a pesquisadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa, do Inpe, Luciana Gatti, que liderou o estudo. “Hoje isso é feito na forma de inventários que usam os índices de desmatamento para fazer cálculos indiretos.”
O CO2 é o principal causador do efeito estufa e reduzir suas emissões é um desafio e compromisso assumidos pelo Brasil para cumprir o Acordo de Paris, pacto firmado entre 195 países contra as mudanças climáticas, e restringir o aquecimento global em 1,5º C em relação aos níveis pré-industriais até ao final do século.
Em 2021, ano com dados mais recentes, o Brasil registrou a maior alta nas emissões de gases de efeito estufa em 19 anos, segundo levantamento do Observatório do Clima. A elevação, de 12,2%, ocorreu em relação ao ano anterior, e teve como principal causa o desmatamento.
O País despejou na atmosfera 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente – uma forma de mensurar todos os gases estufa em uma mesma medida. O último aumento dessa monta havia sido em 2003, quando os dados de desmate bateram o recorde histórico. As emissões de gases estufa subiram 20% naquele ano, conforme o Observatório, que reúne mais de 50 organizações da sociedade civil.
Em novembro de 2021, em Glasgow, durante a última Cúpula do Clima, a COP-26, o governo federal se comprometeu a cortar 50% das emissões até 2030, mas avançou pouco no cumprimento dessa meta. Nem a retomada da economia após o controle da pandemia de covid-19 pode explicar o aumento. Em 2020, na contramão do planeta, que diminuiu em cerca de 7% as emissões, o Brasil viu seus dados crescerem 9,5%. A alta no desmatamento foi a causa desse resultado.
Do total de 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente despejadas na atmosfera em 2021, o desmatamento foi responsável por 1,19 bilhão de toneladas. Para se ter uma ideia do que isso representa: é um valor maior do que todas as emissões do Japão.
Coletas aéreas
A mensuração da pesquisa do Inpe utiliza metodologia diferente, por isso não pode ser comparada, mas Luciana acredita que os dados disponíveis de outros estudos sejam subestimados. O estudo liderado por ela, em parceria com pesquisadores do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), do BD Fogo (sistema de monitoramento de incêndios do Inpe) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi realizado com coletas aéreas em quatro locais da Amazônia, representando cerca de 80% da área da Pan-Amazônia. Ao todo, foram 742 voos com um avião de pequeno porte para fazer as coletas.
Para verificar as consequências do aumento do desmatamento e queimadas na emissão de carbono na Amazônia, os pesquisadores compararam a média das emissões de CO2 no período de 2010 a 2018 com os anos de 2019 e 2020. Nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, houve aumento de até 122% nas emissões de CO2; aumento de 80% no desmatamento e aumento de 42% nas áreas queimadas. Enquanto as multas reduziram 30% e 54%, e os pagamentos das multas reduziram em 74% e 89% respectivamente.
O crescimento das emissões ocorreu principalmente devido ao avanço do desmatamento no lado oeste da floresta, região que era mais preservada até 2018. De acordo com Luciana, o leste da Amazônia, no entanto, ainda emite até oito vezes mais do que o oeste, principalmente os Estados de Mato Grosso e do Pará, os dois maiores emissores. “O desmatamento afeta a produção de chuva e a temperatura. No lado oeste, durante a estação seca, pode chover de 80 mm a 100 mm, no leste, no máximo, 60 mm, e na porção nordeste da floresta, 50 mm”, afirma. “A Amazônia está chegando no ponto de não retorno.”
O problema não é só da Amazônia. Desde a década de 1970, a ciência conhece o fenômeno batizado de “rios voadores”, e, que grandes massas de ar carregadas de umidade vindas da Região Amazônica para o Sudeste brasileiro. No fim daquela década, o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (Esalq), e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Enéas Salati mediu o nível de reciclagem das moléculas de água na Amazônia, um ciclo tão gigantesco que faz com que essas moléculas – vindas do oceano e precipitadas sobre a floresta – sejam evaporadas e voltem em forma de chuvas na região entre 5 a 8 vezes. Quando, finalmente, essa enorme massa de ar se desloca no sentido dos Andes, migra para o Sudeste formando os “rios voadores”,
Agora, os pesquisadores também determinaram quais atividades econômicas foram responsáveis pela perda florestal. A resposta: a exportação de madeira bruta, as áreas plantadas com soja e milho e os pastos para o rebanho bovino. A comparação mostrou crescimentos de 693% na exportação de madeira bruta saindo da Amazônia, de 68% na área plantada de soja, de 58% na área plantada de milho e aumento do rebanho bovino de 13% dentro do bioma, enquanto diminuiu no resto do Brasil.
Esta é a terceira pesquisa de Luciana publicada na Nature. Antes desta, um estudo dela mostrou que Algumas áreas da Floresta Amazônica já passaram a emitir mais dióxido de carbono do que absorvem. O estudo levou em consideração centenas de amostras de ar coletadas na parte mais baixa da atmosfera terrestre, entre 2010 e 2018, e constatou que a parte sudeste da Amazônia se tornou uma grande fonte de emissão de CO2. Durante os últimos 50 anos, as plantas e o solo absorveram mais de 25% das emissões de gás carbônico. Já as emissões aumentaram em até 50%, segundo mostrou a pesquisa.
Nos últimos 40 anos, o leste da floresta sofreu mais desmatamento, aquecimento e estresse hídrico do que a parte oeste, especialmente durante as temporadas de seca. Essa tendência foi observada de forma ainda mais forte na porção sudeste da floresta, segundo a pesquisa.
De acordo com Luciana, a pesquisa publicada agora na Nature trouxe a ela duas certezas, uma que não pode ser classificada como positiva e uma francamente negativa. “Minha motivação foi entender se o Sudeste da Amazônia já havia chegado ao ‘ponto de não retorno’. Nesse período tivemos o ‘Dia do Fogo’, choveu preto em São Paulo. Ainda não chegamos, mas estamos perto”, afirma.
Se não é possível comemorar, ao menos ainda é possível intervir, ela explica. A outra certeza, por sua vez, é a má notícia. “O lado oeste da Amazônia se tornou uma fonte de emissões. O projeto do Amacro (fronteira agrícola que vai formando entre Amazônia, Acre e Rondônia) que quer se tornar um Matopiba (fronteira agrícola já formada por Maranhão, Tocantins Piauí e Bahia) tem que ser abandonado”, afirma. “Esse modelo econômico está falido”, finaliza.