O inquérito que apura suspeita de agressão ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, no aeroporto de Roma, em julho, criou um clima de tensão entre integrantes da Corte e a Procuradoria-Geral da República (PGR). O ministro Dias Toffoli autorizou que Moraes, sua mulher e os três filhos atuem no caso, como assistentes de acusação. A PGR apresentou recurso contra a decisão e também questiona o sigilo decretado sobre o vídeo que registra o episódio, situação descrita como “privilégio”. A instituição quer ter cópia do arquivo, para realizar perícias.

Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, a inclusão das vítimas como assistentes de acusação é decisão incomum e não deveria ser tomada sem uma discussão mais ampla. Ela faz uso de uma brecha legal relacionada ao artigo 268 do Código de Processo Penal. O artigo diz que, “em todos os termos da ação pública, poderá intervir, como assistente do Ministério Público, o ofendido ou seu representante legal”.

Ou seja, o texto da lei é claro ao dizer que a intervenção como assistente deve ocorrer na fase de processo. Mas, ao mesmo tempo, não a proíbe na fase de inquérito. “O ministro Dias Toffoli ignorou qualquer discussão a respeito do tema e simplesmente admitiu o ministro Alexandre de Moraes e familiares como assistentes. Isso é ruim e gera uma evitável exposição do tribunal a críticas”, afirmou o ex-defensor público e professor Caio Paiva.

O assistente de acusação age no processo penal como um “auxiliar” do Ministério Público e, a partir do momento em que um juiz concede a alguém essa condição, a pessoa tem alguns direitos, como apresentar alegações finais e interpor recursos. Podem ser assistentes de acusação vítimas do crime ou, se não estiverem vivas, seus familiares.

Argumento

A PGR argumenta que é inconstitucional ter assistente de acusação na fase de inquérito e que as vítimas não poderiam desempenhar esse papel. A manifestação é assinada pela procuradora-geral da República interina, Elizeta Maria de Paiva Ramos, e pela vice-procuradora-geral da República, Ana Borges Coêlho Santos.

“Não se tem notícia de precedente de admissão de assistência à acusação na fase inquisitorial. Tal privilégio jamais foi admitido para quaisquer das autoridades elencadas, nem mesmo para o presidente da República”, diz o recurso apresentado ontem. A decisão de Toffoli, relator do inquérito, atendeu a pedido das vítimas. Antes, a PGR já havia afirmado não haver “previsão legal” para a medida nesta etapa.

Caso Marielle

Uma questão parecida ocorreu na investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Embora a dinâmica do crime tenha sido esclarecida pela polícia, ainda não se sabe quem foi o mandante da execução. Diferentemente de Moraes, que teve seu pedido logo atendido, a família de Marielle teve de recorrer e esperar meses para poder participar do inquérito. A Justiça do Rio negou o pedido, que só acabou por ser aceito pela 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

O Código de Processo Penal é de 1941 e, de lá para cá, muita coisa mudou. “O papel de vítima, que antes era secundário no nosso sistema, vem cada vez ganhando mais espaço. O tema está em constante discussão na jurisprudência, mas o fato é que a vítima, segundo o entendimento mais moderno, tem direito de contribuir com as investigações, seja como assistente de acusação ou como cidadão”, disse o advogado José Carlos Abissamra Filho, doutor em Direito Penal.

Há outros casos que podem servir de referência. Um deles é o da Favela Nova Brasília, no qual o Brasil foi condenado por violações a direitos humanos. Uma operação policial na comunidade carioca, que fica dentro do Complexo do Alemão, feita nos dias 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995, terminou com 26 homens assassinados e três mulheres vítimas de violência sexual. O local, onde o jornalista Tim Lopes foi assassinado, em 2002, é palco constante de conflitos. Esse caso, conforme o ex-defensor público Caio Paiva, resultou em recomendações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, acolhidas pelo Conselho Nacional de Justiça, para que se faça uma alteração legal para regulamentar a participação de vítimas na fase de inquérito.

De acordo com o professor do Mackenzie Alexis de Couto Brito, o Código quase não trata do inquérito policial e, por isso, a intervenção da vítima não está prevista na lei, mas sobrevive na prática. “Como o inquérito é um procedimento administrativo investigatório, formalmente conduzido por um delegado de polícia que tem total autonomia, não faria sentido a vítima participar ativamente”, disse o professor. O ingresso como assistente de acusação ficaria então para a fase de processo, porque ali há contraditório.

Gravação

A mesma decisão de Toffoli manteve o sigilo sobre as imagens das câmeras de segurança do aeroporto e permitiu apenas que um perito particular indicado pelo advogado de defesa dos investigados, Ralph Tórtima Filho, possa ter acesso a elas.

Em sua última medida sobre o acesso às imagens, Toffoli reiterou que a íntegra da gravação está disponível para as partes e o Ministério Público assistirem, mas negou a extração de cópias. Assim, advogados e procuradores podem marcar um horário para ver a gravação no STF, mas não estão autorizados a levar uma versão.

A Procuradoria-Geral da República afirma que a proposta não é suficiente. “O amplo acesso à prova não significa apenas assistir aos vídeos. Significa ter acesso irrestrito, poder examinar e, se assim entender, submeter aos órgãos técnicos internos para análise e eventual perícia”, argumenta.

No pedido de levantamento do sigilo, PGR afirma que, sem o material bruto, não poderá formar conclusões sobre o caso. As procuradoras alegam que precisam das imagens para compreender toda a dinâmica do episódio e que, ao divulgar “meros recortes”, Toffoli prejudica o trabalho da PGR e também a opinião pública.

A PGR diz ainda que, ao manter os vídeos em sigilo, o ministro limita “desarrazoadamente e inconstitucionalmente” o acesso do Ministério Público a provas da investigação. “Não se pode construir privilégios em investigações criminais e, por tal razão, não se pode admitir a manutenção do sigilo fragmentado da prova no caso em exame”, diz trecho do recurso.

Parecer

Antes de enviar o recurso ao Supremo, a Procuradoria consultou os setores da instituição que trabalham em conjunto na investigação de provas digitais, a Assessoria Nacional de Perícia em Tecnologia da Informação e Comunicação e a Coordenadoria de Investigação em Evidências Digitais e Eletrônicas. Para técnicos das duas divisões, a decisão de manter as filmagens em sigilo contraria boas práticas.

O parecer leva em conta o risco de o arquivo que contém as imagens se perder, por acidente ou por intenção de alguém. “A boa prática preconiza que toda a análise pericial e investigativa, sempre que tecnicamente possível, seja realizada em uma cópia de trabalho absolutamente fiel à original, justamente, para evitar contaminação da evidência ou prova digital”, afirma o documento.

O parecer sustenta que a perícia nas imagens é uma atividade “sensível”, que pode se estender por semanas, e que analistas e peritos não teriam os recursos necessários, como computadores de alta performance e softwares especializados, para analisar as imagens no Supremo, como sugeriu Toffoli. “Realizar essas atividades, por exemplo, nas dependências do STF, em dias marcados, em suma, na prática, tende a inviabilizar a execução dessas atividades.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.