18/11/2023 - 7:02
Desde que se candidatou à presidência na Argentina, o libertário Javier Milei propõe duas medidas para estabilizar a economia do país: a dolarização e o fim do Banco Central. As propostas tornaram-se centrais no debate eleitoral do segundo turno entre o libertário e o peronista Sergio Massa, de centro-esquerda. Para Milei, as duas medidas são necessárias para conter a inflação, que deve chegar a 138% este ano, e valorizar a produção e os salários.
Na América Latina, três países (Panamá, Equador e El Salvador), além da própria Argentina, na época da paridade peso-dólar, adotaram as medidas nas últimas décadas. O Panamá dolarizou sua economia no começo do século 20. Casos mais recentes – Equador e El Salvador – mostram que a substituição da moeda nacional pelo dólar tem impacto direto no controle inflacionário, como tem dito Milei. Entretanto, a medida também provoca outros efeitos na economia que precisam ser considerados.
Economistas se dividem no tema da dolarização, mas todos reconhecem que a medida não resolve os problemas econômicos de uma nação se não estiver atrelada a outras. Uma análise do que ocorreu em El Salvador e no Equador mostra que a falta de autonomia monetária contribuiu para uma distorção no sistemas de preços domésticos, tornando produtos mais caros para os seus moradores, e dificultou a gestão de crises.
Para Susana Herrero Olarte, pós-doutora em economia aplicada e Coordenadora do Centro de Pesquisas Econômicas da Universidad de las Americas (UDLA), em Quito, a dolarização tem uma clara desvantagem, que é a perda da capacidade de fazer política monetária.
“Se o que está acontecendo com os EUA coincidir com o que está acontecendo com o seu país, a economia vai bem. Mas, se não coincidir, isso pode gerar outro problema adicionado à economia, ainda mais em um momento de vulnerabilidade como a crise internacional atual”, afirmou.
Outros economistas lembram que, em determinadas situações, países têm de ter flexibilidade para valorizar ou desvalorizar sua moeda.”O Equador, por exemplo, sofreu muito na pandemia de coronavírus porque não podia injetar mais dinheiro para fazer as medidas necessárias”, disse o economista Leonardo Trevisan, professor da ESPM.
Como funciona?
A dolarização na Argentina trocaria o peso pelo dólar como moeda nacional depois de um período de transição de 16 meses, inspirado no modelo equatoriano, segundo a campanha de Milei. Com isso, a inflação cairia devido a um choque de preços e confiança. Após esse período, o Banco Central Argentino seria extinto.
No entanto, analistas alertam que isso significaria o fim da autonomia da Argentina para controlar a própria política monetária. A taxa de juros e a quantidade de moeda em circulação não seriam mais decididas por autoridades do governo argentino.
“Decisões monetárias seriam tomadas com base na economia dos Estados Unidos e teriam de ser seguidas pela Argentina, que tem outra realidade econômica”, explicou Trevisan.
A paridade na era Menem
A proposta de Milei não é inédita no país. Durante o governo de Carlos Menem, na década de 90, a Argentina adotou a paridade entre o peso e o dólar – uma espécie de dolarização informal – , em meio a uma hiperinflação de 3.000% ao ano (cerca de 15 vezes maior que a atual).
A medida estabilizou a moeda. Uma abertura econômica, acompanhada de privatização de empresas públicas e uma baixa taxa de juros na economia americana, trouxe investimentos.
Após alguns anos de estabilidade, uma sequência de choques externos em países emergentes, primeiro no México, depois na Ásia e na Rússia, no entanto, acompanhadas de um aumento dos juros nos EUA, enfraqueceu o modelo, já que os capitais externos fugiram para países mais seguros. Além disso, desvalorização do real, em 1999, afetou duramente as exportações argentinas, que caíram sensivelmente.
O modelo, para funcionar, dependia de o país receber dólares. Sem os dólares, o governo não podia emitir a quantidade equivalente em pesos e gastar. Com a fuga de capital por causa das crises externas, faltaram dólares para sustentar a economia e o sistema entrou em colapso.
A Argentina enfrentou recessão e o desemprego, que chegou a 30%. Em 2001, após o fracasso do modelo, os argentinos mergulharam numa crise profunda, que levou à fuga do presidente Fernando De La Rúa, de helicóptero, da Casa Rosada.
A dolarização no Equador
O Equador tornou o dólar a moeda oficial em um momento de inflação alta, semelhantes ao que a Argentina vive hoje. O país vivia a pior crise econômica da sua história, com a moeda nacional, o sucre, desvalorizando-se dia após dia. Em uma semana, o custo de US$ 1 passou de 7 mil sucres para 19 mil.
A dolarização aconteceu após um confisco na conta bancária de milhares de equatorianos em 1999. Em março daquele ano, o governo forçou uma espécie de “feriado bancário”, freando o sistema financeiro por cinco dias – período que serviu para o congelamento das poupanças, com o objetivo de evitar saques em massa de recursos em moeda estrageira, com objetivo de conter a inflação, a exemplo do que foi feito no Brasil no governo Collor em 1990.
A medida não funcionou. Em 9 de janeiro de 2000, o então presidente Jamil Mahuad decidiu substituir o sucre pelo dólar. O processo foi realizado num período de cinco meses.
O processo de dolarização de Mahuad veio acompanhado de um caos econômico e institucional. O Equador deu calote na dívida externa e o Fundo Monetário Internacional (FMI) barrou novos empréstimos. O Parlamento não aprovou um Orçamento para o ano seguinte e a, Justiça do país declarou inconstitucional o congelamento de depósitos.
A transição para a moeda americana, apesar disso, não foi interrompida. O então vice-presidente, Gustavo Noboa, assumiu o cargo e comprometeu-se a manter a mudança. A inflação passou de 96,1% naquele ano para 37,7% no ano seguinte, segundo o Banco Mundial.
“Nos governos do final do século 20 foram tomadas muitas decisões fiscais erradas, com péssimos investimentos que prejudicaram bastante à população. Os políticos da época monetizavam o déficit para inflar o orçamento nacional e em certo ponto a crise estourou”, disse ao Estadão o economista equatoriano Alberto Acosta Burneo. “Quando parte do sistema bancário quebrou, o estado buscou uma maneira de resgatá-lo e tomou-se a decisão de dolarizar a economia”.
Crédito e estabilidade
A chegada da moeda americana ao bolso dos equatorianos acabou com os temores de desvalorização repentina e do descontrole inflacionário e também atraiu o investimento estrangeiro, dada a credibilidade da moeda. E há mais de duas décadas a inflação anual fica abaixo dos dois dígitos. A taxa em 2022 foi de 3,7%. Houve também uma expansão no crédito devido à estabilidade econômica.
“Antes do ano 2000 quase não existiam oportunidades de crédito no Equador, devido à pouca confiança na moeda. As pessoas gastavam o pouco dinheiro que tinham rapidamente, porque existia o medo de que em um futuro próximo perdesse todo seu valor. Os valores do sucre variavam todos os dias, e os bancos, fragilizados, ofereciam créditos imobiliários com prazos de apenas 5 anos”, disse o economista. “Posteriormente passamos a ter na economia uma moeda sã (o dólar) que possibilitou pensar a longo prazo, poupar. E as pessoas conseguiram comprar seus imóveis com prazos bem maiores, de mais de 30 anos, por exemplo”.
Entretanto, o país continuou tendo problemas. Na pandemia, por exemplo, a falta de soberania monetária e a baixa capacidade de manobra fiscal fizeram com que o país tivesse graves problemas para estabilizar a economia, registrando uma queda do PIB de 6,4%, de acordo com o Banco Central do Equador.
Dólares e lavagem de dinheiro do tráfico
A chegada da crise da violência relacionada ao tráfico de drogas no Equador testou os limites da economia dolarizada. Nos últimos cinco anos, grupos criminosos organizados e cartéis de narcotráfico estrangeiro tomaram conta do país, estabelecendo um estado do terror. Dúzias de toneladas de droga passaram a ser exportadas para os EUA e a Europa desde portos equatorianos com quase total impunidade. E a lavagem de dinheiro disparou.
O livre fluxo de capital tem favorecido às organizações criminosas, que se fortalecem ao lavar dinheiro ilícito em negócios comuns de setores como o imobiliário ou de serviços – processo que não chama a atenção das autoridades devido à falta de controle de divisas. Uma investigação recente do Observatório Equatoriano do Crime Organizado (OECO) concluiu que a lavagem de dinheiro é o segundo crime mais comum depois do tráfico de drogas em pelo menos seis estados do país: Guayas, El Oro, Manabí, Carchi, Santa Elena e Sucumbíos. O Centro Estratégico de Geopolítica (CELAG) estima que, no Equador, anualmente é lavado dinheiro equivalente a entre 2% e 5% do PIB.
A chegada da crise da violência relacionada ao tráfico de drogas no Equador testou os limites da economia dolarizada. Nos últimos cinco anos, grupos criminosos organizados e cartéis de narcotráfico estrangeiro tomaram conta do país, estabelecendo um estado do terror. Dúzias de toneladas de droga passaram a ser exportadas para os EUA e a Europa desde portos equatorianos com quase total impunidade. E a lavagem de dinheiro disparou.
O livre fluxo de capital tem favorecido às organizações criminosas, que se fortalecem ao lavar dinheiro ilícito em negócios comuns de setores como o imobiliário ou de serviços – processo que não chama a atenção das autoridades devido à falta de controle de divisas. Uma investigação recente do Observatório Equatoriano do Crime Organizado (OECO) concluiu que a lavagem de dinheiro é o segundo crime mais comum depois do tráfico de drogas em pelo menos seis estados do país: Guayas, El Oro, Manabí, Carchi, Santa Elena e Sucumbíos. O Centro Estratégico de Geopolítica (CELAG) estima que, no Equador, anualmente é lavado dinheiro equivalente a entre 2% e 5% do PIB.
El Salvador
Ao contrário do Equador, El Salvador possuía uma economia estável quando dolarizou a sua economia, em 2001. O país possuía uma relação econômica forte com os Estados Unidos e a presença do dólar era alta entre os salvadorenhos. Àquela altura, somente El Salvador e Chile possuíam qualificações creditícias favoráveis na América Latina.
No entanto, o país optou por dolarizar a economia para conter o risco da desvalorização da moeda nacional, o cólon, e reduzir taxas de juros. As metas principais da nação eram eliminar o risco de desvalorização, reduzir as taxas de juros, ampliar os termos de crédito e garantir o valor dos depósitos e da previdência social.
O maior lado negativo do processo foi o impacto da sua traumática transição. A falta de dólares gerou um arredondamento de preços. Com isso, produtos que custavam, por exemplo, $1,79, podiam ter seus valores arredondados para $2 em muitos casos. Em 2002, 55,1% dos salvadorenhos acreditavam que a dolarização era “o principal problema do país”.
Poucos anos depois da dolarização a opinião pública sobre o assunto foi melhorando e o país se manteve estável, mas não é possível atribuir a estabilização ao dólar, já que El Salvador possuía outros mecanismos de controle inflacionário, disse o economista Claudio de Rosa, pesquisador do Observatório de Políticas Públicas da Universidade Francisco Gavidia (UFG).
“Ainda que El Salvador tenha dolarizado a economia, antes existia o regime cambial, que poderia ter tido o mesmo efeito se aplicado de forma eficiente”, declarou.
Com os anos, tornou-se evidente que a dolarização não impulsionou a economia salvadorenha conforme as expectativas. A alta dívida pública e o limitado controle fiscal fizeram com que o país experimentasse um crescimento econômico modesto.
Entre os anos 2000 e 2022, a taxa de crescimento ultrapassou 3% apenas em três ocasiões e nas últimas 3 décadas o crescimento do PIB só superou os 7% de 1992, antes da dolarização, e em 2021.
Além disso, o país é atualmente uma das nações menos atraentes para investimentos estrangeiros na América Latina. De acordo com o Banco Central de Reserva (BCR) de El Salvador, no ano anterior a nação teve uma variação negativa de -133% em investimentos quando comparada ao resultado de 2021.
A economia salvadorenha também se voltou para a importação de produtos, afetando a produção nacional. E o país foi duramente afetado pela crise financeira de 2008, com recessão de 2,1% em 2009, refletindo a vulnerabilidade de choques externos.
A dívida externa teve também um resultado negativo, cresceu no período, passando de 35,4% do PIB em 2021 para 65,5% em 2022, segundo os dados do Banco Mundial.