Considerado um dos principais especialistas em contas públicas da atualidade, Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos, acompanha com apreensão a queda de braço entre o mercado e o governo, liderado no campo econômico pelo ministro Fernando Haddad. O ex-secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e ex-diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, Salto reconhece uma piora do ambiente fiscal, apesar dos avanços na arrecadação, mas enxerga um certo exagero no tom das críticas. Em entrevista à DINHEIRO, Salto falou sobre os principais temas que envolvem a economia e a política hoje.

DINHEIRO — Qual a sua avaliação do atual momento da economia?
FELIPE SALTO — Há uma combinação de fatores, incluindo questões externas e internas. No segundo semestre do ano passado, havia um consenso do mercado a respeito do que viria a ocorrer com as taxas de juros americanas. Com os dados mais fortes por lá, incluindo mercado de trabalho, inflação e atividade econômica, essa perspectiva se alterou. Isto é, passou-se a não vislumbrar mais uma redução de juros no curto prazo. Nos últimos dias, dados mais fracos de inflação e declarações dos dirigentes do Fed ajudaram a formar a perspectiva de que pode haver o início das quedas nos juros, o que melhorou o quadro para nós.

Essa situação deve se prolongar?
Não custa lembrar que o diferencial de juros (internos e externos) é fundamental na formação da taxa de câmbio, domesticamente, e, portanto, da inflação. Do ponto de vista doméstico, a questão fiscal preocupa. Não vejo terra arrasada. Longe disso. Haddad fez uma série de avanços. Ao menos nove medidas para recompor a base da arrecadação, como o fim da subvenção baseada no ICMS (MP 1.185). A questão é que o PLDO para 2025 afrouxou com possibilidade de abatimentos contábeis, o que permite a entrega de déficit, no ano que vem, mesmo com uma meta formal fixada em zero.

A mudança no arcabouço fiscal para antecipar o uso do mecanismo que permite considerar a projeção de receita deste ano para majorar o limite de gastos e a questão do contingenciamento, com uma regra mais frouxa apresentada no texto da LDO, turvaram a confiança do mercado. Há um exagero nisso tudo, porque as contas estão melhorando, mas o mercado parece estar à espera de medidas concretas do lado do gasto. Eis o desafio.

“Sou contrário a essa reforma desde o início. Fiz essas críticas para os amigos que hoje estão comandando o tema no governo. Não adiantou. Paciência”

 

Mas ele se sustenta?
É uma boa regra e dependerá de mudanças em políticas centrais para sobreviver. É parte do seu cumprimento o avanço dessa agenda. Me refiro à Previdência, aos gastos sociais que ocupam espaço de políticas públicas boas, como o Bolsa-Família, e não geram o mesmo resultado, a exemplo do Abono Salarial, que vai para quem está empregado. Temos de avançar com a reforma administrativa e discutir a política salarial, além de debater também os gastos tributários, que continuam a representar uma grande vergonha para todos nós, brasileiros. Quero lembrar que apenas com gastos de saúde abatidos nas nossas declarações do Imposto de Renda, e me incluo nisso, vão-se embora R$ 25 bilhões. É justo isso? Claro que não. Temos de por a colher nessa cumbuca e revisar essas iniquidades também.

Como o senhor vê a Reforma Tributária?
A Reforma Tributária contida na Emenda Constitucional nº 132/2023 é um desastre. Exceto pela CBS, que unifica PIS/Pasep e Cofins, o que deve acontecer sem maiores percalços, até porque já se alimenta essa ideia há tempos, o resto é muito ruim. A parte do IBS, que vai juntar o ICMS, estadual, com o ISS, municipal, é um mergulho no escuro. Haverá um Comitê Gestor, que a meu ver é inconstitucional, porque fere o pacto federativo, para substituir os governadores e governadoras na gestão do próprio tributo. Serão 54 representantes para comandar a partilha, a arrecadação, a distribuição de créditos, a regulamentação, o contencioso. É o fim da Federação como a conhecemos. O IBS é tão intrincado que tiveram de colocar o início da transição dos antigos para o novo tributo apenas em 2029! Essa transição durará quatro anos e, em dezembro de 2032, às vésperas do fim dos antigos tributos (ICMS e ISS), suas alíquotas ainda representarão 60% das atuais. Quem acredita que algo passaria de 60% a zero? É pura história da Carochinha.

Se é tão ruim, porque passou?
Para viabilizar essa aventura, criaram-se diversos fundos, sendo os principais o Fundo para Compensação do Fim dos Incentivos Fiscais e o Fundo de Desenvolvimento Regional. Já em 2025 eles começarão a receber recursos da União, na bagatela de R$ 8 bilhões iniciais. Na soma até 2043, vão ser quase R$ 800 bilhões em recursos para os fundos. Além do mais, não se demonstrou, até agora, como funcionará o sistema de partilha e distribuição de créditos tributários, que prometem ser automático. De duas uma: ou vão erodir a arrecadação dos Estados ou vão fixar a alíquota de referência na lua para dar conta disso. Sou contrário a essa reforma desde o nascedouro. Já fiz todas essas críticas para os amigos que hoje estão comandando o tema no governo. Não adiantou. Paciência.

E a questão fiscal do governo? Existe uma queda de braço entre aumento de impostos e redução de despesas…
O Ministro Fernando Haddad já fez muita coisa. Cito as medidas de elevação de receita, combatendo benesses que remanesciam há décadas. A arrecadação está reagindo bem. Em maio, pelo que constatei no Sistema SIGA-Brasil, na minha coleta realizada aqui pelo time da Warren Investimentos, as receitas líquidas do governo central estão crescendo 9,7% acima da inflação. De janeiro a maio, provavelmente, devemos ter encerrado com crescimento acima de 9%. É muito bom. Ocorre é que faltam medidas do lado do gasto. É tão difícil cortar renúncias tributárias, que hoje somam mais de meio trilhão de reais, conforme dados do Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT), quanto cortar gastos públicos. Há um grau de engessamento grande e é preciso avançar com a desvinculação e da desindexação.

Como resolver isso?
É hora de colocar o dedo na ferida das emendas parlamentares, que já somam o mesmo volume de recursos destinados ao principal programa de investimentos do Governo, o Novo PAC. Essa questão precisa ser urgentemente modificada. Não há hipótese de se promover um ajuste fiscal permanente, que perdure, sem mexer nas emendas parlamentares. Tem que alterar esses pontos. E isso passa por reforma constitucional. De todo modo, estamos longe de um quadro fiscal de risco. A dívida é alta e crescente, mas se a nova regra fiscal aprovada no ano passado for respeitada, é meio caminho andado. O que não se pode é cair no canto das sereias e alterar a meta fiscal do ano. Seria um grande tiro no pé.

Para gerar arrecadação, como o governo pode capitalizar a agenda verde?
A agenda da Transição Ecológica, como vem chamando o Ministro Haddad, é central, a meu ver, para o Brasil se reposicionar após um período em que nos tornamos párias, de 2019 a 2022. A Amazônia é um ativo importantíssimo, que precisa ser tratado à altura. A política externa e a política econômica andam de mãos dadas. O crescimento econômico não pode ser mais algo apartado dos demais desafios – ambientais, sociais e culturais. Vejo, nesse aspecto, um avanço com o governo atual, sobretudo pela pasta da Fazenda, que é comandada por alguém que há muito tem esse matiz, seja pela formação seja pelo histórico nas diferentes áreas de políticas públicas em que atuou.

Em relação aos acordos comerciais, onde o Brasil pode buscar novos parceiros?
É preciso retomar o multilateralismo, o que o presidente Lula já parece estar fazendo, seja por meio da recolocação do país como um player relevante, que se senta à mesa de negociação e debate o futuro do mundo e os interesses nacionais, seja por meio de políticas públicas, na área externa, que valorizem o comércio exterior. Temos muitas vantagens comparativas em diversas áreas e precisamos retomar políticas voltadas à indústria nacional e a competitividade frente aos outros países. A Nova Indústria Brasil, com Alckmin, notadamente, é uma boa iniciativa, sobretudo porque o BNDES está assumindo um papel relevante sem macular as contas públicas. Ao contrário, os bons resultados do banco devem até colaborar com mais receitas de dividendos, pelo que vejo.

Mas ela é suficiente para melhorar a colocação do Brasil no ranking de competitividade?
Há um longo caminho a percorrer. Precisamos aumentar muito os investimentos agregados da economia, tanto pelo setor público quanto pelo privado. Com taxas de juros elevadas, como praticamos hoje, nada feito. Será preciso um reequilíbrio da política macroeconômica combinado com iniciativas que abram espaço relevante no orçamento público para elevar os investimentos de boa qualidade, acompanhados de avaliação e monitoramento. Isso é fundamental. Esse reequilíbrio, a meu ver, passa fortemente por uma política fiscal sólida intertemporalmente.

O plano de Haddad de desvincular a obrigatoriedade dos investimentos em saúde e educação é uma boa ideia?
A vinculação da Saúde e da Educação à receita é uma ideia que precisa ser repensada. Essa previsão constitucional acaba motivando gastos ineficientes, sem necessariamente promover a melhoria das políticas públicas ofertadas nessas áreas. Seria importante retomar a gestão do Orçamento, que foi completamente tomada, na parte discricionária, pelo Congresso Nacional. É urgente promover uma reforma orçamentária e fiscal à altura, inclusive rediscutindo as bases da Lei nº 4.320/1964, que foi recepcionada pela Constituição de 1988 e está por ser reformada desde então. Hoje, o desafio é este. Vale dizer: 93,6% do Orçamento Federal é marcado por vinculações, indexações e/ou obrigações. Não há como gerenciar o país e financiar o seu desenvolvimento com tão pouco espaço, sendo tudo definido antes e, quando a receita sobe, se movimentando e ensejando mais e mais gastos públicos sem avaliação.

“A Reforma Tributária é um desastre. A parte do IBS, que vai juntar o ICMS, estadual, com o ISS, municipal, é um mergulho no escuro”

Qual será o impacto do Rio Grande do Sul no crescimento deste ano?
O Rio Grande do Sul representa algo como 7% da economia nacional. Portanto, o desastre ali ocorrido, além de ser uma calamidade, uma tragédia humana, produzirá efeitos sobre a atividade econômica. Mas não vejo isso como decisivo para o desempenho agregado do PIB, que deve crescer ao redor de 2,2% em 2024. As receitas públicas devem ser parcialmente afetadas e o gasto público também. As liberações de crédito extraordinário foram relevantes e o gasto financeiro já comprometido também. E não há como ser de outra forma. A Fazenda está conduzindo bem, a meu ver, a liberação de dinheiro nessas frentes, sem exagerar e sem deixar faltar.

Quais são as suas previsões sobre inflação, PIB, dívida pública, balança comercial?
A expectativa é que o IPCA deva encerrar o ano em torno de 4%, de acordo com nossas projeções atuais. Já a dívida bruta do governo deverá fechar 2024 em 78,4% do PIB. E o PIB deve crescer a 2,2%. Já a balança comercial deve encerrar com saldo positivo de US$ 80 bilhões.