21/08/2024 - 12:19
Você está internado no hospital e, de repente, alguém da equipe de saúde pergunta sobre suas músicas preferidas. Depois, quer saber sobre seu time do coração e sua comida favorita. “Você tem um animal de estimação?”, continua.
No Hospital Estadual 2 de Julho, em Salvador, essas e outras perguntas integram o chamado “prontuário afetivo”, criado para aproximar funcionários e pacientes e, na medida do possível, tornar o ambiente mais familiar.
O novo prontuário fica grudado na cama do paciente. Ao entrarem no quarto, os membros da equipe multiprofissional leem o documento e usam as informações durante o atendimento na unidade, administrada pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia e integrante do Sistema Único de Saúde (SUS).
“Eu ainda não encontrei nenhum profissional que seja fechado a ponto de não aderir ao questionário e não puxar alguma brincadeira”, diz Jaqueline Amorim, integrante da equipe de psicologia.
‘Ela não ria’
Tudo começou em outubro, mês em alusão aos cuidados paliativos. Havia no hospital uma senhora que “não ria”. Às vezes, conta Jaqueline, ela levava a paciente para admirar a Baía de Todos os Santos da sacada do prédio, mas, por mais que parecesse estar feliz, a mulher não sorria.
“Um belo dia, ela me disse: ‘Não posso sorrir porque estou sem meus dentes’. Arrumamos uma chapa (dentadura) e ela passou a andar sempre sorrindo”, lembra a psicóloga. “Esse cuidado faz toda a diferença”, avalia.
A partir daí, a equipe de psicologia buscou uma forma de se aproximar dos pacientes em cuidados paliativos e, com o tempo, expandiu a proposta. Hoje, o prontuário afetivo é usado em todas as áreas do hospital com longa internação.
“O internamento se torna uma experiência mais acolhedora e humanizada, em que o paciente é reconhecido por sua singularidade”, destaca a coordenadora de psicologia do hospital, Ana Carla Nunes.
Para ela, o prontuário afetivo permite que cada paciente seja visto além de sua patologia e esse senso de individualidade e de pertencimento é fundamental para o bem estar mental, o que ajuda na cura da mazela física.
Toda a família
Um dos prontuários preenchidos desde então é o de Renata Brandão de Oliveira, de 27 anos. Ela é mãe de Aylla, que tem quatro meses de vida e passou dois deles internada por bronquiolite.
A mulher é natural de Irecê, cidade a 480 km de Salvador, e viajou sozinha com a bebê, deixando o marido com a outra filha, de três anos. Jaqueline conseguiu fotos da família reunida e colou na cabeceira da cama, ao lado do prontuário.
“Ela também me contou que era devota de Santo Expedito, então achei uma imagem dele criança e trouxe para ela”, conta a psicóloga. “A gente se sente importante, acolhida, cuidada. Eu falava: ‘Gente, esse hospital é diferenciado’”, afirma Renata, rindo.
Um dos espaços a preencher no formulário é o de “pessoas queridas”, um pouco abaixo do local para “minha família” e logo acima do “trabalho com”. Por ele a equipe fica sabendo, por exemplo, quem foi a visita do dia e se o paciente realmente gosta dessa pessoa.
“Algumas pessoas têm filhos adotivos ou ‘mãe de consideração’, que não constam no prontuário normal. É bem melhor quando conseguimos identificar (esses laços), até para liberar o acesso”, explica Ana Clara.
Quando o paciente ainda não entende o que acontece à sua volta, o prontuário é feito para o acompanhante, como ocorreu com Aylla e Renata. Porém, se a equipe julga que o paciente consegue compreender o que ocorre ao seu redor, ele é o foco das perguntas, mesmo que estas sejam respondidas com a ajuda de um familiar.
É o que acontece, por exemplo, com pacientes da unidade de terapia intensiva (UTI). “Alguns estudos mostram que o paciente consegue ouvir, então chegamos chamando pelo apelido, cantamos uma música que ele goste, conversamos, mesmo sabendo que não vamos ter resposta”, afirma Jéssica.
A intenção, diz Ana Clara, é diminuir o sofrimento tanto do paciente quanto do familiar. “São pessoas que ficam dias aqui, muitas vezes sem família em Salvador, e precisam dessa interação para ter ânimo nessa luta.”