20/09/2024 - 8:00
O economista sergipano Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI) para assuntos de América Latina e atual membro sênior do Policy Center for the New South, está há décadas fora do País, mas analisa a economia brasileira quase que em tempo real. Ele se tornou um dos maiores especialistas em Brasil mundo afora com suas análises de quem enxerga o cenário em perspectiva.
Mesmo vivendo nos arredores da capital americana, Washington, nos últimos anos Canuto tem se debruçado nas análises sobre a situação fiscal e econômica do Brasil. Sua mais recente constatação é que, apesar do recente crescimento do PIB, que avançou 1,4% no segundo trimestre, será necessário combater a ineficiência dos gastos para garantir a sustentabilidade desse desempenho.
Confira sua entrevista:
Qual a sua avaliação sobre as mudanças a caminho no Banco Central, com a saída de Roberto Campos Neto e a potencial entrada de Gabriel Galípolo?
Não é possível avaliar ainda como será. As projeções de mercado indicam uma alta na Selic nas próximas reuniões, mas a indicação pelo presidente Lula pressupõe uma tendência de cortes dos juros. É esperar para ver.
E sobre a economia brasileira? Como o sr. avalia as medidas do governo Lula e a questão fiscal?
O ministro Fernando Haddad está tentando equilibrar o aumento de gastos públicos com a necessidade de manter a economia em uma trajetória fiscal controlada. Avalio que a trajetória de endividamento não será explosiva, mas a qualidade do gasto público preocupa.
Mesmo com o PIB em crescimento, vamos continuar sofrendo com a anemia de produtividade e a obesidade do setor público.
Mas sempre que se discute isso, sobra para a previdência social…
A previdência é um desses casos. Os ganhos para a economia com a última reforma da Previdência já foram perdidos, devolvidos com essa indexação a salários crescendo acima da inflação. A gente precisa de mais ajustes. Hoje já precisamos de mais reformas da previdência.
Você pode explicar melhor essa doença dupla da economia brasileira?
A anemia de produtividade significa que, sem aumento de produtividade, não haverá crescimento econômico sustentável. E a obesidade do setor público significa que o governo gasta muito e gasta mal, com despesas que não contribuem para o crescimento econômico. Precisamos de mais investimentos em infraestrutura e de uma melhor alocação dos recursos públicos.
Como disse Paul Krugman, a produtividade não é tudo, mas é quase tudo. A rigor, fora momentos extremamente favoráveis do comércio mundial para exportações, só vamos ter crescimento econômico e de renda per capita com aumento de produtividade. E nessa questão temos registrado desempenho muito ruim nas últimas décadas.
Então, o problema é tanto a falta de investimento em áreas estratégicas quanto a ineficiência nos gastos?
Exatamente. O Brasil tem um grande volume de gastos públicos, mas a maior parte vai para áreas que não geram retorno econômico. Isso inclui aposentadorias privilegiadas e salários mais altos no setor público em comparação ao setor privado. Precisamos de uma reforma mais profunda para corrigir essas distorções.
Como está o clima aí em Washington com todas essas mudanças a caminho na política americana e na economia? Há um risco real de desaceleração econômica?
Vou começar pelo mais fácil, que é o quadro macroeconômico. Apesar da turbulência no começo do mês, causada pelo desmonte de posições de carry trade [aplicação financeira que consiste em tomar dinheiro a uma taxa de juros em um país e aplicá-lo em outra moeda, onde as taxas de juros são maiores] baseadas no iene e pelos indicadores de emprego abaixo da expectativa, houve um certo pânico sobre a economia americana. Muitos acreditavam que ela já estava em recessão. Isso levou a um ajuste exagerado nos mercados, mas, logo depois, as coisas se acalmaram. A inflação, por exemplo, ainda não chegou à meta de 2%, mas está em declínio.
Então as reações do mercado têm sido exageradas?
Sim, com muito exagero. Tanto que agora os mercados estão prevendo cortes na taxa básica de juros em breve nos Estados Unidos. As atas do Fed sugerem que o ciclo de redução das taxas pode começar já na reunião de setembro, o que deve ser muito bom para o Brasil porque tende a aumentar o fluxo de dólares.
Qual tem sido a influência da política americana nas eleições e na economia? O mercado está mais pró-Trump ou pró-Kamala?
Não creio que o mercado tenha uma preferência clara entre Donald Trump e Kamala Harris. As promessas de ambos, especialmente as de Trump, podem ter impactos diferentes em setores específicos. Por exemplo, se Trump elevar as tarifas de importação como prometeu, isso pode prejudicar o poder de compra dos americanos, especialmente dos mais pobres. Mas ambos os candidatos são simpáticos à ideia de reduzir impostos para aquecer o consumo.
No caso de vitória de Kamala haverá um distensionamento na guerra comercial entre Estados Unidos e China?
Seja qual for o vencedor, a disputa vai continuar, mas de forma mais seletiva. Enquanto Trump busca um descolamento total da China, a abordagem democrata é mais sobre reduzir riscos em áreas estratégicas, como semicondutores e energia limpa.
O sr. mencionou que o cenário econômico global pode ter impactos em diferentes setores nos Estados Unidos. Pode elaborar mais sobre isso, especialmente em relação às promessas de Trump
Claro. A proposta de Trump de elevar tarifas de importação em 10% para todos os produtos e em 60% para itens vindos da China causaria um impacto negativo. Embora alguns setores possam se beneficiar com o aumento da produção doméstica, as tarifas não serão pagas pelos exportadores estrangeiros, mas sim pelos consumidores americanos. Isso reduziria o poder de compra, afetando principalmente os mais pobres, que usam uma grande parte da renda para consumo. No fundo, essa política se assemelha à estrutura tributária regressiva que temos no Brasil, onde os pobres acabam pagando proporcionalmente mais.
Então, o sr. acredita que a política comercial defendida por Trump afetaria mais negativamente os americanos de baixa renda?
Sim. Isso cria um paradoxo interessante: muitos dos eleitores que apoiam essas políticas não percebem que elas os atingem diretamente, reduzindo seu poder de compra. Ao focar em tarifas, Trump essencialmente estaria movendo os EUA em direção a uma estrutura tributária que prejudica os mais pobres, como vemos no Brasil, onde a carga tributária recai fortemente sobre o consumo.
E se a Kamala vencer, o que mudaria em termos de política comercial? Ela segue a mesma linha de Joe Biden?
A abordagem democrata tende a ser mais seletiva. A ideia não é um descolamento total da China, mas uma redução de riscos estratégicos. Eles focam em áreas como semicondutores e energia limpa, onde há uma competição tecnológica intensa com a China. Isso inclui tanto subsídios quanto tarifas direcionadas para proteger esses setores estratégicos, como foi o caso da Inflation Reduction Act de Biden.
E quanto à China? Como os EUA estão se posicionando no que diz respeito à concorrência chinsesa em tecnologia?
A China fez grandes avanços, especialmente na energia limpa. Eles investiram mais em energia renovável nos últimos 12 anos do que a soma dos Estados Unidos e Europa juntos. E isso inclui não só a produção de placas solares, mas também a liderança em baterias para veículos elétricos e infraestrutura de energia eólica. Na frente dos semicondutores, os EUA ainda estão na liderança, mas os chineses estão rapidamente se aproximando, apesar das restrições impostas pelos Estados Unidos e seus aliados.
Qual a sua visão sobre a situação política e econômica da América Latina, especialmente em relação aos nossos vizinhos Argentina e à Venezuela?
A situação da Venezuela é muito grave. O Brasil e outros países adotaram uma postura diplomática ineficaz. O governo Lula terá de mudar a postura para não se queimar ainda mais. A fraude lá é inaceitável. Quanto à Argentina, o ajuste proposto por Javier Milei é doloroso, mas necessário, dado o descalabro fiscal e inflacionário do país. Quanto mais estáveis estiverem Argentina e Venezuela, melhor para o Brasil. Mas essa estabilidade parece cada vez mais distante.
Diante desta realidade, no seu entendimento, qual deve ser o papel do Brasil nesses cenários?
O Brasil está fazendo o que pode. No caso da Argentina, é só seguir em frente. Mas no caso da Venezuela será difícil sustentar a neutralidade e a diplomacia diante de tantos crimes conta a democracia. O governo Maduro tem usado de todas as ferramentas à sua disposição para se manter no poder, inclusive a repressão. Apesar das sanções internacionais, o país encontra refúgio em parcerias com países como China, Rússia e Irã. Quanto à Argentina, a situação fiscal e monetária é insustentável.
O Brasil e outros países da região, como Colômbia e México, adotaram uma abordagem diplomática inicialmente, mas sem muito sucesso. A verdade é que não há muito mais que o Brasil possa fazer proativamente. As sanções tiveram algum impacto, mas não resolveram o problema. A resolução depende principalmente dos venezuelanos, o que pode exigir algum tipo de ruptura interna.
No entendimento do senhor, a política econômica adotada por Javier Milei está dando certo?
A agenda de Milei é radical, mas espera- se que, depois dessa fase de dor, a confiança volte, e a economia possa sair da crise com investimentos e recuperação da inflação e das contas públicas. Não é fácil resolver a economia argentina. Foram muitas décadas de destruição e populismo. A recuperação vai levar muito tempo também, se eles errarem pouco.