25/09/2024 - 6:20
“Perdi todo meu salário para o Tigrinho. Do mês retrasado para o mês passado, o salário caiu na conta e foi tudo embora em questão de um dia e meio”, disse o mineiro Gustavo Martins, de 28 anos, em uma postagem nas redes sociais em junho deste ano. A publicação, segundo ele, foi um alerta para quem cogita entrar nesse universo de apostas esportivas. Seu primeiro contato com as bets foi há dois anos, em uma brincadeira com os amigos.
No entanto, a vontade de ganhar cada vez mais fez com que o mineiro se tornasse dependente dos jogos de azar. “Quando eu comecei a ganhar dinheiro, a sensação era de total euforia, satisfação e prazer. Comecei com jogos de todos os tipos nas casas de apostas”, conta.
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Nos primeiros meses, Martins chegou a faturar R$ 50 mil, mas o desejo era sempre por mais. Por causa dos lucros, cogitou até deixar o emprego e viver apenas com os ganhos. Contudo, as apostas começaram a sair do controle, comprometendo seu salário.
O jovem não é o único a usar parte do orçamento familiar para essa finalidade. Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, mostrou que 63% de quem aposta no país teve parte da renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos.
Esses dados refletem uma tendência preocupante, evidenciada ainda mais por um relatório divulgado pelo Banco Central nesta terça-feira (24/09), que revelou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em sites de apostas esportivas, somente no mês de agosto. O valor equivale a 21,2% dos recursos distribuídos pelo programa no mesmo mês.
Ainda segundo o banco, 24 milhões de brasileiros fizeram ao menos uma transferência deste tipo no país desde janeiro. A maioria dos apostadores tem entre 20 e 30 anos e gasta cerca de R$ 100 por aposta. Este valor sobe de acordo com a idade. Brasileiros acima de 60 anos gastam uma média de R$ 3 mil reais em bets.
Como reconhecer a dependência em jogos
Martins precisou perder o salário para notar que sofria com um transtorno. “Eu não me satisfazia em fazer R$ 200 ou R$ 300 por dia. Eu queria sempre fazer R$ 10, 20 mil todos os dias, então, às vezes, eu fazia mil reais e, ao invés de sacar, tentava mais e acabava que saía sem nada”, relembra.
Assim como ele, muitos brasileiros demoram a perceber a dependência. Segundo os especialistas, como os jogos e aplicativos estão instalados no celular e o aparelho é usado com frequência, fica cada vez mais difícil reconhecer a adicção.
O vício em apostas online não afeta apenas o comportamento dos jogadores, mas também altera o funcionamento do cérebro de forma semelhante a outras dependências químicas, como drogas e álcool. Segundo Luciana Becker, psicóloga e especialista em Transtornos Adictivos pela PUC Rio, o sistema de recompensa cerebral é diretamente impactado pelo jogo patológico.
“Quando uma pessoa ganha ou está prestes a ganhar, o cérebro libera grandes quantidades de dopamina, neurotransmissor associado ao prazer e à satisfação. Esse aumento gera uma sensação de euforia, incentivando o jogador a buscar repetir a experiência”, explica Becker.
Contudo, o problema se agrava com o fenômeno conhecido como tolerância. “Assim como ocorre com substâncias psicoativas, o cérebro passa a exigir apostas maiores para atingir o mesmo nível de prazer. Isso leva a um comportamento compulsivo, com os jogadores assumindo riscos cada vez mais altos”, detalha a especialista.
Esse ciclo de dependência compromete a capacidade de tomar decisões racionais, perpetuando o comportamento adictivo. Em alguns casos, pode demorar muito tempo para que familiares e o próprio jogador percebam que o hábito está saindo do controle.
“O jogador patológico apresenta uma incapacidade de controlar o impulso de jogar, mesmo quando o jogo faz com que ele tenha tido, por exemplo, perdas financeiras significativas, prejuízos nas relações pessoais e problemas no trabalho”, pontua Becker. O estresse por não jogar, mentiras e outros prejuízos na rotina também indicam a compulsão.
Desafio de saúde pública
Desde a regulamentação das apostas online em 2018, pelo então presidente Michel Temer, a prática de jogos de azar cresceu de forma expressiva no Brasil. Hoje, o país ocupa a terceira posição mundial em consumo de casas de apostas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Inglaterra, de acordo com dados da Comscore, empresa especializada em análise de dados.
O aumento desse hábito tem gerado preocupação entre especialistas da saúde, que veem o jogo como uma questão de saúde pública. Bruna Lopes, psicóloga e pesquisadora do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (Proamiti), da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a busca por tratamento de problemas relacionados a jogos de azar triplicou desde a liberação.
“Tem sido uma epidemia. O perfil inclui pessoas mais jovens, vulneráveis, sem parceiro e em condições socioeconômicas mais baixas. Também observamos associação com episódios de depressão e ansiedade”, explica Lopes.
Essa escalada nos números também foi confirmada pelo psiquiatra Marcelo Santos Cruz, coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas e vice-diretor do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ele destaca que o problema não se limita aos jogadores, mas afeta profundamente suas famílias. Além disso, a falta de regulamentação efetiva e políticas públicas claras agrava o cenário. “O que vemos é um crescimento enorme dessas atividades, tanto nos jogos de celular quanto nas apostas esportivas, e muito pouco controle governamental. Isso é extremamente preocupante do ponto de vista da saúde mental”, alerta o psiquiatra.
Tratamento e ajuda
Para que alguém consiga deixar a compulsão em bets, o tratamento deve ser multidisciplinar. É preciso que o indivíduo receba um acolhimento e não sofra julgamentos e estigmas. Para aqueles que conhecem alguém em situação semelhante, a recomendação é promover conversas abertas e empáticas.
Martins chegou a ouvir de pessoas próximas e de seus familiares que aquilo era “safadeza” e frescura. Foi só depois de se abrir para a irmã e para o pai, que ele conseguiu ser ouvido e segue em acompanhamento com um psicólogo e psiquiatra. “Tomo remédio controlado para evitar impulsos. Não tenho acesso ao meu dinheiro, que é totalmente gerido ainda pelo meu pai”, conta.
Para dar início a um tratamento adequado, o primeiro passo é que a pessoa tome iniciativa e queira receber ajuda. Também é recomendado usar aplicativos que bloqueiam sites de casas de apostas e cancelar ou excluir o cadastro para não receber nenhum tipo de notificação. “É importante trabalhar os gatilhos e fazer com que a pessoa consiga acessar outras atividades prazerosas”, reforça Lopes.
O tratamento deve ser feito com um psicoterapeuta especializado em terapia cognitivo comportamental, e que possa direcioná-lo nas ações cotidianas, com o intuito de diminuir os riscos da prática. Em alguns casos, o uso de medicação também é indicado.
Caso o indivíduo não tenha recursos para fazer um tratamento privado, o recomendado é procurar Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que oferecem atendimento gratuito e que pertencem ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Existem ainda grupos de mútua ajuda, como os Jogadores Anônimos e os Devedores Anônimos, que podem auxiliar no processo. “Há muitos recursos e é importante que a pessoa e as famílias saibam que podem e devem buscar ajuda quando se identificarem em uma situação desse tipo”, reforça Cruz.