Na política, a conta é simples: quem tem a maioria, tem o controle. E, com base nisso, o presidente da República eleito analisa e negocia uma coalizão política para garantir a governabilidade e a implementação de suas propostas de campanha. Na economia, em tese, a conta considera cenários de crescimento e de inflação, finanças públicas, projeções e riscos – inclusive o político. E, com base nisso, o presidente do Banco Central deve conduzir a política de juros no Brasil. Um precisa compor para governar. O outro precisa de independência para decidir.

E foi justamente na intenção de blindar a economia da política que a cúpula do BC lutou tanto pela aprovação formal da autonomia da instituição, que só veio em 2021, com a lei complementar 179. Problema resolvido, então? Na prática, não.  Três anos após a aprovação da autonomia, a independência do BC enfrentará seu maior teste a partir de 2025: fazer com que ela valha, de fato, quando o presidente Lula tiver maioria absoluta na diretoria colegiada do BC.

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Pelo modelo de autonomia em vigor no Brasil, com mandatos intercalados dos diretores, há gap, um momento no qual o presidente da República, em tese, teria o controle sobre a independência do BC. A partir do início do ano que vem, quando começa a segunda metade do seu mandato, Lula terá indicado diretamente cinco dos nove diretores que compõem o Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central, instância que define o rumo da taxa e juros no país. E, a partir de janeiro de 2026, último ano do seu governo e quando estará em jogo a sucessão presidencial, 100% da diretoria colegiada do órgão serão indicação direta do presidente da República. Se for reeleito, Lula terá, no início do eventual novo mandato, um BC que poderá chamar de seu.

“Isso, porém, não significa ter controle sobre as decisões das pessoas que nomeou”, argumenta, pedindo anonimato, um graduado interlocutor da equipe econômica. “São todos técnicos, qualificados, responsáveis, com mandato para controlar a inflação e nomes no mercado para zelar”, complementa.

Até agora, toda vez que o assunto intervenção política sobre o Banco Central surge internamente defende-se que: 1) por ser uma diretoria colegiada, o presidente não faz nada sozinho; 2) ao assumir o cargo, ele ainda leva um tempo para construir uma maioria e convencer pelo menos outros quatro diretores com seus argumentos, que precisam ser sólidos; 3) o presidente do BC se preocupa com a sua reputação e com o legado que deixará, já que ao sair da instituição precisará disputar uma vaga no mercado financeiro; e 4) como o BC é composto por funcionários de carreira, a “burocracia” interna serve como um anteparo. Essa combinação, argumenta-se, ajuda a suavizar a pressão que a autoridade monetária sofre.

Arte da política

Para os críticos, o que o cenário a partir de 2025 sugere é, em parte, diferente disso e haverá uma zona de risco para o BC. Apesar de estrear como presidente do Banco Central em janeiro do ano que vem, Gabriel Galípolo já trabalha na casa há mais de um ano, como diretor de Política Monetária, conhece e tem facilidade para convencer muitos lá dentro e, nesse caso, acredita-se que dificilmente terá a burocracia como empecilho.

No entanto, desde que teve o nome anunciado como sucessor de Roberto Campos Neto, vem enfatizando sua independência em relação ao presidente da República – independência, segundo ele, garantida pelo próprio Lula. Durante sabatina no Senado, ele disse que nunca sofreu qualquer pressão do Planalto e demonstrou total conforto e naturalidade ao tratar do assunto com os parlamentares.

Convenceu? Essa é não é a melhor das palavras. Os senadores se deram por “satisfeitos”, afinal, sabem melhor do que ninguém que, entre a fala e a prática, nesse caso, há a arte da política. Galípolo, desde a equipe de transição, vem demonstrando jogo de cintura, e sua proximidade com Lula é um diferencial em relação aos seus antecessores. Por enquanto, isso pesa a favor dele, mas há dúvidas até quando, principalmente porque o governo entrará, a partir de 2025, na zona de tensão da sucessão presidencial.

A preocupação com o rumo do BC a partir do ano que vem tem amparo na história recente, que ainda assombra muitos dentro da autoridade monetária. A gestão de Alexandre Tombini (2011-2016), um técnico de carreira considerado altamente qualificado, é apontada, dentro do próprio BC e pelo mercado financeiro, como desastrosa, justamente por tentar acomodar as pressões políticas.

Tolerância com inflação

A equipe de Tombini entrou para história como tolerante com a inflação. Isso porque, lembram técnicos, ele teria cedido à tentação de tentar acomodar as pressões políticas. O governo tinha uma agenda voltada para redução dos juros cobrados nos empréstimos aos consumidores e o mercado interpretou que o patamar de juros fixado pelo BC não tinha sustentação diante dos indicadores econômicos da época, que incluíam problemas fiscais.

Os sinais contraditórios e a incapacidade do BC de coordenar as expectativas de inflação teriam sido, para os críticos, responsáveis por impulsionar a alta dos preços posteriormente. Com isso, o Copom teve de subir os juros e, em alguns momentos, houve grande desencontro na comunicação da autoridade monetária, ora dizendo que os juros poderiam subir e, na sequência, sinalizando que as taxas poderiam cair ou ficar estáveis. As expectativas de inflação dispararam e a economia mergulhou numa recessão. Durante a gestão Tombini, a inflação esteve sempre perto do teto da meta.

Canto da sereia

“Galípolo é um cara inteligente para se deixar ficar encantado pelo canto da sereia”, diz um amigo próximo. “Ele vai focar na construção de reputação e, acredito, acordado com o presidente Lula”, opina o economista Roberto Padovani, do Banco Votorantim. Segundo ele, estudos mostram que é praxe o presidente do BC ser conservador quando assume o cargo exatamente porque quer construir reputação e ancorar as expectativas de inflação.

Padovani reconhece que o modelo de autonomia do Banco Central implementado no Brasil tem falhas. No entanto, afirma que “não há um desenho muito melhor do que esse” e que a independência da autoridade monetária conseguiu resistir a dois testes importantes: o primeiro foi minimizar os ruídos durante a disputa eleitoral em que Lula foi eleito, em 2022. “Depois, em 2023, também passou no teste do início do governo e toda pressão em cima do atual presidente Roberto Campos Neto”, diz. Agora, admite, “haverá mais esse teste, da primeira mudança de fato em todas as cadeiras da diretoria colegiada”.

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