02/11/2024 - 8:00
RESUMO
• Atuação temerária a partir do maior acidente ambiental brasileiro deflagrou contaminação potencial de mais de 600 mil pessoas
• Acordo entre a União, estados e empresas extingue ação de indenização das vítimas
A 10 dias do nono aniversário da maior tragédia ambiental da história brasileira – o rompimento da barragem de Fundão, na mineira Mariana – as partes chegaram a um acordo celebrado como se a Justiça finalmente estivesse sendo feita, embora tardia.
O acidente, que matou 19 pessoas, destruiu completamente duas cidades e devastou o meio-ambiente em escala incalculável, custou às responsáveis – Samarco, Vale e BHP — R$ 170 bilhões em parcelas anuais ao longo 20 anos, com foco em ações reparatórias e compensatórias para as comunidades afetadas, como pescadores, agricultores e indígenas.
Só esqueceram das 600 mil pessoas afetadas diretamente pelas medidas tomadas logo após o desastre, principalmente na intoxicação da bacia do Rio Doce em todos os 650 quilômetros que os rejeitos percorreram da cidade mineira até o Oceano Atlântico em 17 dias, trajeto onde os efeitos repercutem nocivamente até hoje.
Após o anúncio do acordo, a Associação Nacional de Defesa dos Consumidores de Água e de Vítimas do Uso do Tanfloc protocolou petição junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a homologação do combinado entre União, estados de Minas Gerais, Espírito Santo e companhias envolvidas, que extingue a ação civil pública em que reivindicam indenização de R$ 177,2 bilhões.
O pivô da ação coletiva para reparação das 600 mil vítimas atende pelo nome de Tanfloc.
• Trata-se de um coagulante utilizado no tratamento de águas em geral e de resíduos industriais.
• A mineradora em Mariana tinha como produto principal a confecção de pelotas de minério de ferro, quando o material bruto passa por diferentes processos até que seja transformado nas esferas ferrosas.
• No processo, todo o rejeito que sobrava era depositado na barragem de Fundão, que virou uma imensa montanha da mesma dimensão que a Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, com 2,6 milhões de metros quadrados, mas dez vezes seu volume, com 62 milhões de metros cúbicos de lixo tóxico misturado à lama.
Ao romper a barragem, em 5 de novembro de 2015, areia, ferro, resíduos de alumínio, manganês, cromo e mercúrio se incorporaram à bacia do Rio Doce e contaminaram a água. Em 12 das cidades no caminho entre a barragem rompida e a foz do Rio Doce, a Samarco optou por utilizar o produto nas estações de tratamento de água para que pudesse voltar ao consumo humano. Isso apesar de, até então, o produto ter sido prioritariamente utilizado para fins industriais. E não economizou nas doses.
Enquanto o site da fabricante do coagulante sugere a utilização máxima de 1,5 mg do produto a cada litro de água bruta tratada que for destinado ao consumo humano, a mineradora chegou a concentrar 60 mg por litro em algumas situações, 40 vezes mais do que o indicado.
Isso consta em relatório pericial elaborado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Federal do Estado do Espírito Santo e Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (Facto), em 2018. Ou seja, três anos após o acidente.
O comum em casos do tipo seria a aplicação de sulfato de alumínio. “A única conclusão lógica que o perito chegou sobre a utilização é que foi por razão financeira, já que a quantidade de Tanfloc necessária para o serviço representaria economia para as empresas sobre a opção do sulfato de alumínio. Ou seja, dolosamente contaminaram a água destinada ao consumo, submetendo a população a experimento social, como se fossem ratos de laboratório”, disse Diego Carvalho, advogado que representa as associações autoras da ação.
No processo em que foi feito o laudo pericial, a Tanac, fabricante do produto, não reconhece utilização anterior para consumo humano.
Com a conclusão do laudo pericial, o Ministério Público pediu à Justiça Federal de Belo Horizonte (MG) a suspensão da captação de água do rio, além de denunciar que a Samarco ofereceu um produto nocivo à saúde para a limpeza de líquido destinado ao consumo da população. Os peritos encontraram “resíduos de formaldeído, usado como um dos reagentes químicos no processo de fabricação do floculante”, conhecido como formol, classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer como carcinogênico, tumorigênico e teratogênico, segundo sentença na ação civil pública transitada em julgado sobre o laudo pericial, de outubro de 2023 .
O laudo pericial apontou: “A dose máxima do produto foi cumprida em 173 dias (56,5%). Durante o restante de 133 dias (43,5%) do uso de Tanfloc SG, a dosagem ficou maior que a DMU (Dosagem Máxima de Uso) e a maior dosagem foi de 60mg>L (6 vezes maior que a DMU)”.
Para os peritos, o máximo recomendável seria de 10mg/l, quase sete vezes mais do que o fabricante sugere. A ciência aponta que ingestão de água com rastros de formaldeído é arriscada e pode provocar efeitos cancerígenos a longo prazo. Pesquisadores chamam esse efeito de “toxicidade crônica”, capaz de provocar tumores no corpo.
As empresas envolvidas na recuperação das águas chegaram ao ponto de lançar o produto diretamente no curso do Rio Doce, sem definição de parâmetros de dosagem, em canal que conduz às comunidades de Aracruz, no Espírito Santo. Pela documentação anexada na perícia, foi uma espécie de teste de imensas proporções, já que foi verificado efeito desejado em 450 metros seguintes ao local de despejo.
“É estarrecedor esse fato, pois o processo de decantação em qualquer lugar do mundo ocorre em tanques com a água parada e, neste caso, lançaram diretamente no canal do rio, com a água em forte fluxo de movimento. Mesmo assim, ocorreu a decantação”, disse Carvalho.
Para tentar recuperar as águas, empresas lançaram produto com potencial cancerígeno diretamente no curso do Rio Doce, sem parâmetros de dosagem
Procurada pela reportagem, a mineradora preferiu não se pronunciar. “A Samarco informa que os devidos esclarecimentos serão prestados pela empresa conforme andamento e legitimidade dos autos do processo”, respondeu em nota. A Tanac também não respondeu sobre composição e protocolo de utilização do Tanfloc.
AÇÃO INTERNACIONAL
Como uma das controladoras da Samarco é a anglo-australiana BHP, e dada a morosidade da Justiça brasileira no caso, foi aberta brecha para que ela fosse processada na Inglaterra pelo envolvimento no desastre. A ação foi movida por coletivo de 700 mil pessoas, incluindo comunidades indígenas, quilombolas, empresas e municípios. O valor total solicitado em indenizações começou em R$ 32 bilhões e alcançou R$ 230 bilhões no decorrer do processo, no qual não está sendo solicitada indenização pelo consumo de água contaminada com dosagens potencialmente nocivas de Tanfloc. Quando o julgamento começou, em 21 de outubro, e com a previsão de cinco meses de duração, as empresas correram para costurar acordo no Brasil e evitar um gasto ainda maior.
Mesmo com o acordo recém-firmado, para o qual estiveram presentes a ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o presidente Lula, a briga segue nos bastidores.
• Nísia lembrou durante o evento que a repercussão do rompimento da barragem será vivida em longo prazo. “Temos a clareza que os efeitos causados pela tragédia em Mariana serão sentidos por gerações”, disse.
• Já Lula focou na resposta à sociedade. “Cada ministério que está envolvido em alguma área tem que apresentar projetos. Não é o discurso que faz a obra acontecer, é a qualidade do projeto. Cada centavo que for utilizado é tido como investimento para recuperar os danos que uma empresa causou.”
As associações autoras da ação ainda fazem um segundo questionamento, sobre suspeita de violação de sigilo e interferência das empresas no correr do processo, uma vez que os autos dessa ação tramitam sob segredo de justiça nível 2 e somente o Ministério Público Federal teria conhecimento do seu conteúdo. As associações demandaram que a Polícia Federal investigue quem revelou as informações sigilosas aos réus e por quais razões e circunstâncias o fez.
Em apuração com fontes ligadas ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, a reportagem soube que a petição entrou na fila para ser analisada antes da homologação do acordo. Caso o STF homologue o acordo da maneira que foi firmado, as vítimas pretendem ajuizar ação no Reino Unido baseadas no argumento de que os mecanismos por aqui não estariam funcionando de forma adequada. A Corte Interamericana de Direitos Humanos também seria acionada. “Essa postura seria uma injustiça sem precedentes e uma vergonha para o Brasil no cenário internacional”, disse Carvalho.