A judicialização descontrolada do setor de saúde privada tem comprometido não apenas a capacidade das gestoras manterem suas operações como também penaliza os clientes dessas empresas, uma vez que impacta diretamente nos custos dos planos. Crítico do excesso de processos judiciais na área, o presidente da Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abramge), Gustavo Ribeiro, aponta que a quantidade desmedida de ações nos tribunais brasileiros, alvo de reportagem no site IstoÉ Dinheiro há duas semanas (confira aqui), decorre do fato de o Brasil ser o único pais do mundo a ter normativas pouco claras e ambíguas para o setor. Na visão do executivo, a falta de clareza abre brechas para a enxurrada de processos judiciais no segmento, danosos tanto para as empresas como para os usuários, principalmente os de menor poder aquisitivo.

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Em entrevista à IstoÉ Dinheiro, o executivo citou declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, que defendeu que não há insegurança jurídica no Brasil, com exceção de três setores – saúde, tributário e trabalhista.

“O Brasil é o único país do mundo que tem regras tão abertas para um setor tão sensível e tão importante”, afirma o presidente da Abrange.

Segundo Ribeiro, o volume excessivo de processos contra operadoras de plano de saúde impacta o equilíbrio financeiro das empresas – que por sua vez as obriga a aumentar o ticket médio dos seus produtos, fazendo com que os outros beneficiários ‘paguem a conta’.

“Então você imagina o seguinte, você precifica um produto, um plano de saúde, e você tem muitas variáveis que podem acontecer, e que estão previstas na formação do preço. Mas, uma questão de judicialização endêmica, como temos no Brasil, isso não tem como você precificar. Então por óbvio que esse impacto econômico é diluído entre todos os usuários do sistema na forma de reajuste, de aumento de preços, e isso é muito ruim para a economia”.

Número de processos disparou

O número de processos judiciais contra operadoras de planos de saúde no Brasil tem aumentado significativamente nos últimos anos. Os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que em 2023 foram registrados 234.111 novos processos, representando aumento de 60% em relação a 2020, quando foram contabilizados 145.695 processos, e também um recorde para a série histórica.

No ano de 2024 foram, de janeiro a outubro, 36.525 novas ações judiciais relacionadas a planos de saúde, uma média de 120 processos por dia, segundo dados do Business Intelligence (BI) do CNJ.

No total, existem mais de 330 mil processos envolvendo operadoras de planos de saúde no Brasil, sendo que os principais motivos para a judicialização incluem negativas de cobertura, reajustes abusivos, cancelamentos de contratos e recusas de serviços por parte das operadoras.

Brasil opera sem rol taxativo

Ribeiro, da Abramge, destaca que o Brasil é um dos poucos países que opera sem regras fixas e claras acerca da cobertura de planos de saúde.

“Em praticamente todo país há rol taxativo. Você tem um produto, que precisa ser precificado, e ela passa por algumas premissas, sendo que uma das principais é saber o que ela entrega, qual é o rol de que precisa ser entregue”.

O rol taxativo é uma lista que contém uma relação descritiva  de itens, serviços ou direitos, significando que apenas o que está listado deve ser cumprido ou fornecido. Ou seja, um rol taxativo implica que as operadoras de planos de saúde não são obrigadas a cobrir tratamentos ou procedimentos que não estejam clara e expressamente previstos nessa lista.

O Brasil se destaca pela existência do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, que serve como referência nacional para a cobertura obrigatória dos planos de saúde.

Até 2022, a interpretação predominante do rol era exemplificativa, permitindo a inclusão de tratamentos prescritos por médicos mesmo que não estivessem na lista. Em 2022 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o rol passou a ser considerado taxativo, mas mitigado, com exceções possíveis para casos específicos.

A decisão gerou amplo debate na sociedade, que e diversos recursos chegaram ao STF.

Ainda em 2022, em meados de junho, a suprema corte então confirmou a taxatividade mitigada do rol da ANS.

Ou seja, a regra atual é que embora a lista seja considerada taxativa, há exceções que permitem a cobertura de tratamentos fora do rol, como indicação médica fundamentada.

Impacto  nos preços dos planos de saúde

presidente da Abramge chama atenção para que justamente um dos principais desafios do segmento é a inflação médica. O executivo explica que na média, os preços do setor já tendem a subir de forma mais intensa do que os demais – cenário que também é agravado pelas judicializações.

Um estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) indica que os reajustes médios dos planos coletivos, que abrangem mais de 80% dos beneficiários, superaram significativamente a inflação no período.

No ano de 2023 o reajuste médio aplicado aos contratos coletivos de assistência médico-hospitalar foi de 14,38%, ante 11,52% registrados no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para o setor de saúde no mesmo período.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) estabeleceu um reajuste máximo de 6,91% para o período entre maio de 2024 e abril de 2025.

Para 2025, analistas do Citi estimam um reajuste médio de 6,5%, refletindo um cenário operacional mais favorável.

Além disso, o segmento de planos de saúde acaba tendo um problema único, relativo à tecnologia.

“A medicina é a única área que, com mais tecnologia, os preços ficam mais caros. Quanto mais inovadora é a tecnologia, mais cara ela é. Isso porque é difícil ela ganhar escala e não existem protocolos de utilização claros”, analisa Ribeiro, da Abramge.

“Você tem exames de imagem – Raio X, tomografia, tomografia com contraste, ressonância -, e você entra no hospital e faz todos esses exames e vai mapeando os sintomas. Isso é um empilhamento sucessivo de tecnologias que acabam agregando custos, que são cada vez mais caros. Medicamento também está cada vez mais caro. Quanto mais tecnológico é, mais caro ele é. O custo continua alto”, completa.

Nos 12 meses encerrados em março de 2018, o Índice de Variação do Custo Médico-Hospitalar (VCMH) registrou uma alta de 16,9%, enquanto o IPCA no mesmo período foi de 2,7%, indicando que a inflação médica foi aproximadamente 6,3 vezes maior que a inflação geral.

Em anos mais recentes, o cenário não é destoante disso, sendo que em 2024 a inflação não chegou aos 5% ao passo que a inflação médica foi projetada para atingir 14,1% pela consultoria AON.