Ao dizer numa entrevista após a posse que o Brasil precisaria mais dos Estados Unidos do que o contrário, Donald Trump deu um claro recado à diplomacia não só de Brasília, mas também de outros países da América Latina. A fala do republicano mostra uma tentativa de reafirmar o papel dos EUA como nação mais poderosa do mundo, num momento em potências como a China e blocos econômicos como o Brics assumem cada vez mais protagonismo internacional.

Contudo, mesmo que historicamente a influência dos EUA na relação bilateral com o Brasil seja inegável, os dados atuais mostram que essa assimetria tem sido cada vez menos gritante. Economicamente, por exemplo, a balança comercial entre os dois países manteve um equilíbrio nos últimos anos. Os Estados Unidos são o segundo parceiro comercial brasileiro, ficando atrás apenas da China. Já o Brasil fica em 15º no ranking de relações bilaterais americanas.

Em 2024, as exportações brasileiras para a terra de Donald Trump somaram 40,3 bilhões de dólares (R$ 243 bilhões), de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). No movimento contrário, o volume foi bem similar, com as importações americanas no Brasil atingindo 40,5 bilhões bilhões de dólares (R$ 244,2 bilhões).

Ou seja, o saldo é positivo para os Estados Unidos. Mas essa diferença no ano passado foi de 253,3 milhões de dólares (R$ 1,53 bilhão), valor que pode ser considerado um equilíbrio nessa relação, aponta a professora Carolina Pedroso, do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp).

“A balança comercial é muito equilibrada, por isso, não se vê tanto mais essa assimetria. Em outros tempos, haveria desbalanceamento – o Brasil importava muitos produtos de valor agregado e exportava os de baixo valor”, diz ela.

“Hoje, exportamos para os EUA produtos primários, sim, como café e petróleo. Mas também celulose, aço e aeronaves. São produtos que têm alto valor agregado e tecnológico”, complementa Pedroso. No ano passado, a indústria brasileira foi responsável por 78% dessas exportações, de acordo com Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham Brasil). Por outro lado, o Brasil também compra principalmente produtos de alto valor agregado dos Estados Unidos, com 15% das importações sendo de motores e máquinas não elétricas.

Apesar disso, há uma influência grande dos americanos na América Latina, o que pode ser explicado também pela conjuntura histórica. O fato de ter sido o primeiro país a conquistar a independência no continente, em 1776, proporcionou aos Estados Unidos a vantagem de sair na frente em vários aspectos, inclusive na industrialização, lembra a professora da Unifesp.

Mais tarde, no século 20, o país aumentou a influência cultural e política exercida sobre os vizinhos, principalmente durante a Guerra Fria, com apoios diretos e indiretos às ditaduras de direita que surgiram na América Latina, inclusive no Brasil.

“A América Latina sempre foi um pátio dos Estados Unidos. É claro que a dependência financeira e política ainda é bastante assimétrica, mas já foi maior. O Brasil não é um país pequeno, internacionalmente temos relevância. Historicamente, os EUA já reconheceram o papel da liderança brasileira na América Latina”, acrescenta Pedroso, que vê na declaração do presidente mais um aceno ao eleitorado ressentido pela queda no padrão de vida americano do que uma verdade absoluta.

Uma das promessas de campanha dele, a de taxas de importações, pode até mesmo ser um tiro no pé e causar aumento de preços dentro dos EUA, já que o país também depende de produtos do exterior, como no caso do aço brasileiro.

O papel do Brics

Na mesma entrevista em que subestimou a relação bilateral com o Brasil, Trump teceu críticas ao Brics. O bloco – do qual fazem parte também Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia – terá presidência brasileira em 2025.

Uma das discussões no Brics, cujos países somam 46% da população mundial, é uma alternativa ao dólar para as transações comerciais. Questionado, Trump afirmou que “não há como fazer isso”.

Na prática, o Brics representa um arranjo alternativo à hegemonia que os Estados Unidos construíram principalmente a partir da Segunda Guerra. Com a dianteira tomada pela China, segunda maior economia do mundo, há a ameaça de que a influência americana seja substituída.

Mas essa briga também não será fácil para Trump. “Os EUA também têm uma dependência enorme da China, que detém muitos títulos americanos e reservas em dólar”, lembra Carolina Pedroso, da Unifesp.

Aliança anti-trumpista

A retórica do chefe da nação mais poderosa do mundo funciona como um reforço do slogan trumpista de “tornar a América grande de novo”. Nesse contexto, a frase sobre o Brasil é tanto estratégia de marketing pessoal quanto aceno aos apoiadores, lembra Dawisson Belém Lopes, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

“Dizer essas coisas de forma desassombrada foi um dos traços que o eleitorado americano considerou. Mas, ao externar esse pensamento, Trump, ao mesmo tempo que galvaniza apoio interno, repele parceiros internacionalmente”, lembra Lopes.

Segundo ele, a fala não é um “absurdo”, já que, por se tratar do país mais rico e com maior poderio militar do mundo, é difícil pensar em relações bilaterais simétricas com os Estados Unidos. “Mas isso não quer dizer que o Brasil deva se subordinar e aceitar esse tipo de provocação. Não há indicativo qualquer neste momento que o Brasil possa se favorecer bilateralmente com o governo Trump”, acrescenta.

Por outro lado, o professor da UFMG pontua que a posição do republicano pode ter consequências desfavoráveis aos americanos, já que cria reações de outros governos, que se veem instados a reagir, afastando parceiros potenciais como os latino-americanos e os europeus, por exemplo em temas como o meio ambiente. Uma das primeiras medidas de Trump foi retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris. “Ele pode estar criando para si um desafio que consistiria nessa aliança anti-trumpista”, arremata o professor.

“É uma fala que em si não é absurda, já que os EUA tendem a ter vantagem na relação com a América Latina. Mas ela pode trazer mais malefício que benefício. Abdicar de diplomacia sempre é uma aposta arriscada, porque o custo aumenta nas interações e, pelo visto, a julgar pelas primeiras reações de países da América Latina, não vai ser submissão e subordinação o que o Trump vai encontrar pela frente”, afirma Lopes.

Ele lembra que, na América Latina, já houve reações contrárias logo após a posse de Trump. O presidente do Panamá, José Raul Mulino, disse que “nenhum país vai interferir” na administração do Canal do Panamá, cujo controle o americano prometeu retomar para os EUA. Já Claudia Sheinbaum, presidente mexicana, provocou e sugeriu chamar o vizinho de “América Mexicana” após Trump ter externado a intenção de renomear o Golfo do México para “Golfo da América”.