Servidores da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), vinculada ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgaram uma carta aberta chamando de “ataque leviano” e “cortina de fumaça” as acusações feitas pela atual direção do instituto sobre um suposto envolvimento irregular de professores e pesquisadores ativos e inativos em pesquisas encomendadas a uma consultoria privada chamada Science.

O IBGE vive uma crise interna há meses, deflagrada, entre outros motivos, pela criação da fundação de direito privado IBGE+, apelidado de IBGE Paralelo. Na última sexta-feira, 24, o IBGE divulgou um comunicado da presidência ocupada por Marcio Pochmann sugerindo que a gestão dele vem sendo criticada em retaliação a instauração de uma investigação interna sobre uma denúncia anônima de ilícito e conflito de interesses envolvendo servidores.

Alvo de sucessivas investidas da atual presidência, o sindicato dos trabalhadores do órgão, o Assibge-SN, também respondeu às acusações, esclarecendo que nenhum de seus integrantes tem qualquer relação com a suposta denúncia nem com a consultoria mencionada nas investigações. Além disso, a mobilização de trabalhadores do instituto contra medidas consideradas “autoritárias” de Pochmann teria começado antes mesmo da instauração de tais investigações, lembrou a entidade que representa os servidores. Na resposta, o sindicato afirma que “a linguagem propositalmente confusa adotada no Comunicado da Presidência, buscando associar as possíveis irregularidades aos servidores que têm protestado contra a gestão foi ato de deliberada desinformação, aproximando-se de uma prática difamatória”.

“A apuração, conforme a documentação divulgada, teve início em 15 de outubro. Nas semanas anteriores, os servidores promoveram mobilizações contra a criação da fundação de direito privado IBGE+ e outras medidas autoritárias da gestão Márcio Pochmann. Naquela data, os servidores já haviam realizado um grande ato em frente a sede do IBGE (26 de setembro), uma live de debate sobre a Fundação IBGE+(9 de outubro) e um dia de paralisação na unidade da Av. Chile (15 de outubro). Fica evidente, portanto, que a apuração foi uma resposta a mobilização dos servidores, e não o contrário, como tenta apresentar a direção do IBGE”, argumentou o Assibge-SN.

O sindicato diz apoiar procedimentos de apuração conduzidos “com seriedade e preservando o pleno direito de defesa, evitando abordagem midiáticas e precipitadas que ataquem a reputação dos servidores e a imagem do Instituto”.

O comunicado da Presidência do IBGE alegava ter identificado situações de conflito de interesses na atuação da consultoria privada Science, que teria em seu quadro de funcionários servidores ativos e inativos. A presidência diz ter documentos sugerindo um aporte de recursos do IBGE da ordem de US$ 50 mil para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que seriam transferidos para a Science para realização de pesquisa. O comunicado do IBGE menciona ainda uma carta-convênio do BID para a consultoria com previsão de um repasse de US$ 440 mil para a realização da mesma pesquisa, com previsão de aporte de recursos adicionais de mais US$ 220 mil, o que totalizaria US$ 660 mil.

Carta aberta

Em carta aberta, trabalhadores lotados na Ence responderam que os recursos citados no comunicado da presidência do IBGE referem-se ao “Projeto Regional Indicadores ambientais e de mudança climática”, gerido pelo Hub Regional da Organização das Nações Unidas (ONU) para Big Data no Brasil. A iniciativa, sediada na própria Ence, seria externa às atividades do plano regular de pesquisa do IBGE, alinhada às atividades acadêmicas e científicas de inovação, com potencial de apoiar as estatísticas públicas, em harmonia com as recomendações internacionais. Eles acrescentam que os recursos do BID teriam sido repassados à consultoria para o projeto através de um pedido da própria direção do IBGE à época.

“Conforme disponível na própria página da entidade, ‘o Hub Regional das Nações Unidas para Big Data no Brasil visa contribuir para o avanço no uso de big data para melhorar a produção de estatísticas oficiais, promovendo o compartilhamento de conhecimento e o desenvolvimento de iniciativas inovadoras na América Latina e Caribe'”, destacam os servidores da Ence. “Dada a especificidade dos trabalhos desenvolvidos pela Escola na área de ensino, pesquisa e extensão, não há irregularidade no financiamento de atividades de pesquisa acadêmica, cientifica e tecnológica com aportes de organismos multilaterais como é o caso do BID. A Ence é IBGE, mas possui atividades distintas daquelas ligadas ao plano regular de trabalho do Instituto por meio de suas diretorias finalísticas.”

Os servidores lembram que a Escola Nacional de Ciências Estatísticas é uma instituição de ensino superior que responde administrativamente ao IBGE, mas também ao Ministério da Educação (MEC), por conta das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Os professores, pesquisadores e técnicos desenvolvem pesquisas acadêmicas e de inovação tecnológica, inclusive com financiamento de entidades de fomento, por isso os servidores argumentam não haver conflito de interesses na participação em projetos dessa natureza. Eles defendem ainda que “os dispositivos legais e normativos não preveem impedimento para que servidores exerçam atividades de consultoria para associações científicas tais como a Science, que é uma sociedade de direito privado para fins não econômicos, ação social, educativa e sem fins lucrativos”.

Represália às críticas

Os servidores da escola dizem que as acusações publicadas pela gestão Pochmann são uma “represália às críticas”.

“Nesse ínterim, consideramos as acusações levantadas contra professores e pesquisadores ativos e inativos da Ence e, portanto, do IBGE, um ataque leviano à integridade e trajetória profissional dos servidores do Instituto. Trata-se de uma investida que se soma às iniciativas tomadas contra a Assibge em represália às críticas e preocupações legítimas do corpo funcional quanto às ações e omissões da presidência do órgão”, diz o documento.

Os servidores da Ence acrescentam que não permitirão que tais iniciativas da presidência do IBGE sejam usadas “como cortina de fumaça para desviar o foco das importantes e necessárias discussões com o corpo funcional sobre os benefícios e riscos relacionados à criação de uma fundação de apoio”.

“É preciso abrir espaço para o diálogo, de modo a superar a lamentável crise que se abateu sobre o IBGE”, conclui a carta aberta dos trabalhadores da Ence.

Na própria sexta-feira, 24, um comunicado da diretoria da Science manifestou “total repúdio às acusações sem fundamento” divulgadas pelo IBGE. O texto diz que os documentos divulgados são especulativos e se baseiam em investigações ainda não concluídas. A Science afirma serem falsas as alegações de que seria uma consultoria privada agindo dentro do IBGE ou que teria se beneficiado de recursos do instituto, declarando que opera de forma transparente, autônoma e independente há mais de 30 anos.

“Dados do Portal da Transparência confirmam que não houve qualquer repasse financeiro do IBGE para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nos últimos dois anos. Portanto, é inviável qualquer alegação de que recursos do IBGE, repassados ao BID, tenham sido transferidos à Science”, afirma a consultoria. “É inaceitável que uma instituição com a importância do IBGE, através de sua Presidência, lance suspeitas infundadas sobre uma organização com mais de três décadas de existência e que sempre teve como inspiração a defesa do interesse público e o desenvolvimento nacional. A Science permanece à disposição para prestar, quando formalmente instada, todos os esclarecimentos necessários de sua atuação e reitera sua confiança de que as investigações serão conduzidas de maneira justa e imparcial, confirmando a lisura de suas atividades.”

Procurada pela reportagem, a direção do IBGE não se manifestou até a publicação deste texto.