03/03/2025 - 6:19
Gaúcho Hugo Pott é um dos poucos mestres marceneiros que ainda preservam ofício. Calçado é símbolo autêntico da cultura germânica que perdura no Sul do país.Na bucólica Linha Berlim, interior de Westfália, município no Vale do Taquari (RS) com pouco mais de três mil habitantes, reside Hugo Pott, de 68 anos, agricultor, marceneiro e, desde 2018, um dos últimos guardiões no estado de uma tradição germânica: os sapatos de pau.
Bisneto de imigrantes alemães, Hugo aprendeu a confeccionar os calçados numa oficina técnica promovida pela prefeitura com o intuito de preservar a herança cultural da região. Desde então, tem se destacado pela habilidade em transformar um simples pedaço de madeira em uma verdadeira obra de arte.
A paixão pelo ofício nasceu com o desejo de preservar a tradição de um grupo de danças folclóricas do qual ele faz parte, o Westfälische Tanzgruppe, fundado por imigrantes da região alemã da Westfália.
Ainda iniciante, venceu um concurso de confecção de sapatos de pau promovido pela prefeitura. “Tinham apenas cinco inscritos”, confessa, aos risos, numa voz carregada por um forte sotaque alemão.
“Infelizmente há pouco interesse das pessoas neste tipo de trabalho”, lamenta o marceneiro, um dos últimos gaúchos a dominar a técnica ancestral de confecção deste tipo de sapato – um símbolo da cultura germânica que ainda resiste, especialmente, no Sul do Brasil.
O processo
O trabalho de Hugo Pott, minucioso e impressionante, é realizado em um pequeno galpão de madeira instalado em frente à casa onde vive com a esposa, Delci Körnen Pott, de 67 anos, rodeado por plantações de milho e animais domésticos num terreno de cerca de dois hectares.
Ali, cada detalhe reflete a dedicação e habilidade de Hugo no manuseio das ferramentas.
A primeira etapa, como ele mesmo explica, consiste na seleção da madeira, geralmente canela, que é mais leve e resistente, pois não trinca ao ser manuseada. A madeira é cortada com um machado próprio e preparada. Em seguida, é colocada de molho por até dois meses em um grande barril, cheio de água, para que fique sempre úmida e maleável.
Com martelo e formão – uma ferramenta de corte reto, com lâmina chata e afiada na ponta –, Hugo esculpe o interior do sapato, criando um buraco que se ajusta ao pé.
Após a secagem à sombra, para evitar rachaduras, o sapato é lixado manualmente e refinado com uma grosa, uma haste dura de aço com ranhuras usada para desbastar a madeira.
A modelagem do sapato é feita com o auxílio de um molde, que garante o tamanho e a forma correta. Com formões e goivas – instrumento cortante utilizado para o entalhe em madeira –, esculpe-se o interior e o exterior do sapato, arredondando as bordas e criando um calçado, digamos assim, “mais confortável”.
O acabamento é feito com um lixamento final, seguido da fixação de tiras de couro na ponta do sapato e da aplicação de verniz e decoração. Na sola do sapato, Hugo faz questão de registrar as iniciais de seu nome e sobrenome – “HP”.
“As pessoas ficam impressionadas com o trabalho, com toda a técnica artesanal. É como se elas estivessem voltando ao passado. Transformar um pedaço de madeira em um sapato representa uma verdadeira arte”, afirma o idoso, que produz cerca de 30 pares por ano, conforme a demanda.
Comercialização
Os sapatos de pau são vendidos a R$ 250 o par, no tamanho grande, e R$ 100 o par, no tamanho pequeno, este último frequentemente adquirido como uma lembrança singular para presentear pessoas queridas.
Para a confecção dos sapatos de pau em miniatura, o marceneiro diz que prefere trabalhar com a madeira caroba ou timbaúva. Essas espécies se destacam pela leveza e maleabilidade, características essenciais para a produção de peças mais delicadas.
Hugo explica que, antigamente, os sapatos de pau eram usados no dia a dia e em eventos especiais, como cultos dominicais, com a diferença de uma tira de couro chanfrada como adereço no sapato especial. Já durante o inverno rigoroso, as pessoas usavam meias de lã e palha de milho nos sapatos para se proteger do frio.
Hoje os sapatos são usados pelo grupo de danças Westfälische Tanzgruppe em todas as suas apresentações, como forma de homenagear os antepassados. O grupo “Amigos do Sapato de Pau”, também incorporou o calçado ao seu uniforme.
Trabalho atrai curiosos
Por alguns anos, Hugo recebeu dezenas de estudantes de escolas da região em seu galpão, na Linha Berlim, para compartilhar sua técnica e apresentar o processo de produção dos sapatos de pau. Mas o artesão diz que foi obrigado a interromper as visitas por falta de espaço adequado.
“A Prefeitura poderia oferecer um local para receber visitas e realizar oficinas – como um pequeno ateliê, por exemplo –, onde os alunos pudessem aprender e, quem sabe, se apaixonar pela arte dos sapatos de pau”, sugere.
Apesar do lento desaparecimento desta técnica artesanal legada pelos imigrantes alemães, o trabalho de marceneiros como Hugo Pott se destaca ao manter viva uma tradição ancestral. Em meio à modernidade e às transformações culturais, preservar a produção dos sapatos de pau é mais do que resgatar um ofício: é reafirmar uma das muitas facetas que compõem a identidade e a história do Sul do Brasil.