08/03/2025 - 15:00
Quando a africana liberta Catarina Mina caminhava pelas ruas de São Luís do Maranhão colonial, a cidade parecia estremecer. Caminhava altiva, sempre sorrindo. Atrás dela, o cortejo de outras africanas, vestidas de renda, ouro no pescoço, nos pulsos, nas orelhas. “Lá vem Catarina Mina com as suas escravas para a festa da padroeira”, escreveu um jornalista da época.
Catarina Rosa Pereira de Jesus chegou ao Brasil como escrava da Costa da Mina, região do golfo da Guiné (daí o nome “Mina”). Foi quituteira, comerciante: de escrava de ganho a “mulher de negócios”. Comprou sua alforria e fez fortuna com o dinheiro do próprio trabalho, e, segundo dizem, dos favores prestados a comerciantes portugueses da Praia Grande (algo que a historiografia nunca provou).
“Quando encontrei o inventário da Catarina Mina, fiquei surpresa. Essa mulher era riquíssima! O inventário, e depois o testamento, foram os documentos que mais me emocionaram durante as pesquisas sobre a vida dela”, contou a historiadora Iraneide Soares da Silva, que estuda a vida da africana. Embora seja difícil precisar o valor dos seus bens, sabe-se que tinha muito – e o mistério sobre como ela alcançou tal feito intriga estudiosos até hoje.
Testamento generoso
Datado de 1887 e hoje preservado no arquivo público do Tribunal de Justiça do Maranhão, o testamento da ex-escrava revela uma generosidade incomum entre os ricos da época. Mina distribuiu sobrados, casas, vilas e lotes entre comadres, figuras influentes do judiciário e do meio eclesiástico. Mas, acima de tudo, libertou seus escravos e lhes assegurou riqueza – algo raro, pois em geral esses eram repassados como bens.
Os documentos mostram que Catarina Mina acumulou riqueza e criou uma rede de socialização e cooperação entre mulheres libertas durante a escravidão, explica a Iraineide Soares. Nos jornais da época há muitos a anúncios de fugas de mulheres que contavam com redes de apoio, pois, para fugir, precisavam de colaboração externa.
De fato, até hoje circulam em São Luís histórias sobre a vida de Catarina Mina. Elas falam de uma personagem de caráter heroico, que comprava escravos para os libertar. Mas as pesquisas historiográficas revelam que ela também manteve escravos durante a vida.
Quando eles saíam com ela às ruas, andavam bem ornados, mas sempre descalços, explica a historiadora. “Há sempre essa pergunta: ‘Como assim? Catarina Mina viveu a escravidão e escravizou?’ Minha compreensão é a que quando existe um escravo numa condição de vida miserável, e você o traz para perto de si para ser tratado com mais humanidade, há um pouco a lógica de trazer para perto para poder libertar de algum modo.”
A documentação sobre Mina revela que foi uma das mulheres mais ricas do período, com pecúlios e riqueza, mas que não teve o título de ‘senhora dona’, um importante símbolo de distinção para mulheres de posse.

“Beco Catarina Mina”
Catarina Mina não teve o reconhecimento oficial para a época, mas fez história. Seu nome ficou em ruas, músicas, marcas de roupas e nas cozinhas da capital maranhense. O assim chamado “Beco Catarina Mina” era o local onde vendia peixes e farinha, e nele se encontra um restaurante que também leva o nome da benfeitora.
Maria de Lourdes, a dona do estabelecimento, ri ao dizer que trabalha muito, mas não tem a liberdade que Catarina Mina conquistou. Para ela, a história de Mina – marcada pela solidariedade e uma mudança incomum de condição social para a época – entrelaça passado e presente, inspirando sua própria vida.
“Quando eu coloquei o nome do restaurante ‘Catarina Mina’, comecei uma grande pesquisa. Antes de eu vir para esse beco, ninguém falava sobre ela. Eu já trabalhei muito essa história e divulgo sempre que posso.”
Maria de Lourdes tem o restaurante desde 1990. Por muitos anos preservou o testamento de Catarina Mina, mas o entregou para conservação. Segundo ela, a ex-escrava teria falecido por volta dos 35 anos. Ao longo de sua vida, além de comprar a própria alforria, comprava outros escravos e os libertava, incluindo a própria mãe.
A pesquisa revela que Mina teve um único filho, chamado Alexandre (embora haja controvérsias se foi realmente filho, afilhado ou se faleceu ao nascer). A africana também teria se casado e, num gesto significativo de ascensão social, adquirido para seu esposo uma patente de alferes, um posto de oficial subalterno do Exército, intermediário entre tenente e aspirante a oficial.
Como Mina enriqueceu?
Uma das questões mais intrigantes sobre a história dessa personagem é por que Catarina conseguiu enriquecer e outros escravos, não? Segundo historiadores, havia uma diferença entre a escravidão urbana (contexto em que Mina viveu) e a rural, em que era muito mais difícil qualquer ascensão social, pois escravos raramente tinham alguma remuneração.
No Brasil colonial e no Império, escravos de ganho, como Mina, trabalhavam nas ruas sob ordens de seus senhores, devendo entregar uma quantia diária estipulada. Essa prática surgiu no século 17, mas só no Império passou a ser mais controlada pelo Estado. Esse trabalho lhes permitia, em algumas circunstâncias, acumular algum valor excedente, que poderia ser guardado para negociar a compra da alforria e acumular algum recurso.
Diferentemente dos escravizados nas fazendas, os escravos de ganho desempenhavam atividades urbanas remuneradas, como carregadores, doceiras ou faziam pequenos reparos. As mulheres trabalhavam dentro das casas e podiam sair para vender. E as pesquisas mostram que Catarina foi além, ao construir, à sua própria maneira, negócios que lhe permitiram acumular muitos bens.
O caráter de Catarina Mina chama atenção nos documentos seu respeito, explica a historiadora Iraneide Soares. Como quituteira, estabeleceu sua rede de sociabilidade que manteve até a ascensão social. Foi uma personagem bem relacionada naquele contexto histórico, o que explicaria, em grande parte, o seu mérito.
Também o historiador Manolo Florentino, um dos maiores nomes nas pesquisas sobre os escravos de ganho no Brasil, mostrou, com estudos principalmente sobre o Rio de Janeiro, que os escravizados eram vítimas, mas também tinham ação, relevância e protagonismo como sujeitos humanos.
Florentino explicou numa entrevista em 2012: “Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria […]. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de manumissões [ato de libertar um escravizado].”
Outras histórias de ascensão social
Mas Catarina Mina não foi a única ex-escrava bem-sucedida no Brasil colônia, embora essa não fosse a realidade mais comum em todo contexto da escravidão. Cem histórias semelhantes de mulheres negras escravizadas com trajetórias excepcionais para o período estão no livro Dicionário biográfico: Histórias entrelaçadas de mulheres afrodiaspóricas (Editora Malê, 2024).
Adelina, a Charuteira, filha de uma escravizada e de um senhor empobrecido, tornou-se vendedora de charutos em São Luís. Frequentando o Largo do Carmo, entrou em contato com estudantes abolicionistas e passou a atuar como informante, alertando sobre investidas policiais e auxiliando na fuga de escravizados, contribuindo para o movimento abolicionista.
Para além do Maranhão, no Piauí do século 18, Esperança Garcia não se tornou advogada formalmente, mas é reconhecida simbolicamente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como primeira advogada do país. Mulher negra e escravizada, ela ficou conhecida por escrever uma carta-petição ao governador da capitania do Piauí, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria e pedindo melhores condições para si e outras escravizadas.
Esse documento foi considerado por juristas e historiadores um dos primeiros registros de petição por direitos no Brasil. Em reconhecimento a seu ato pioneiro na luta por justiça, a OAB do Piauí concedeu-lhe, em 2017, o título honorário de primeira advogada do estado.
Segundo a pesquisadora Iraneide Soares, a ausência de histórias como essas nos livros escolares implica que “a historiografia brasileira tem muito a avançar nas pesquisas sobre essas personagens que aparecem como sujeitos ativos e dinâmicas de vida diferentes, na história da escravidão”.